Entre o amor e a guerra
Dissertação de mestrado na Unisinos relata casos pitorescos de amor entre brasileiros e paraguaias durante o conflito que devastou o país vizinho entre 1864 e 1870
Se você descrê da máxima hippie "faça o amor, não faça a guerra", saiba que ela não se resume a um urro libertário das décadas de 60 e 70 do século passado. Foi, também, prática comprovada nos anos 60 e 70, mas do século anterior, o 19. Se você pensa que a Guerra do Paraguai se limita a escaramuças e política, creia que aqueles difíceis anos entre 1864 e 1870 tiveram muito romance. Para os mais céticos, quem comprova a tese do amor se sobrepondo à guerra e rompendo fronteiras em litígio é um historiador gaúcho que buscou na cúria do bispado de Assunção os registros de relações quase impossíveis entre paraguaias e militares brasileiros. Foram pelo menos 300 casamentos desse tipo.
O estudo "Sob o Olhar da Imprensa e dos Viajantes Mulheres Paraguaias na Guerra do Paraguai", dissertação de mestrado do historiador Fernando Lóris Ortolan na Unisinos, é recheado de casos pitorescos, ocorridos em 1870, último ano da guerra. Um deles é o pedido formal de casamento elaborado pelo capitão Honório José Teixeira, do Rio de Janeiro, e pela paraguaia María Felipe Iralgo. "Achando-se amasiados e ela já grávida, desejando-se unir a esse matrimônio e estando próxima a retirada do suplicante para o Brasil, pede a Vossa Reverendíssima o pedido desta formalidade", dizem, em carta ao bispo.
Outro pedido formalizado devidamente por escrito ao bispado de Assunção foi feito pelo cabo José Joaquim da Silva. "Com o favor de Deus, querem casar-se o cabo do Esquadrão da 1ª Bateria de Infantaria José Joaquim da Silva, filho de José Duarte da Silva e Maria Cristóvão da Silva, natural de Pernambuco e atualmente em Humaitá, com Maria Dorothea, filha de Izidro Franco e Carlota Benitez Izidro, natural de Pilar, República do Paraguai, sendo seus pais mortos".
Mestre em História pela Unisinos, Ortolan, nascido em Guaporé, 34 anos atrás, é doutorando sobre o mesmo tema (mulheres na Guerra do Paraguai e os efeitos liberais) na Universidade Federal do Paraná, Estado brasileiro colado ao país vizinho.
Ao falar das mulheres, dos romances, das guerras e dos seus efeitos, Ortolan se perfila entre os que choram o destino guarani. Em tom lamentoso, conta que a população paraguaia, quando se iniciou a guerra, girava em torno de 420 mil a 450 mil habitantes, baseando-se no censo de 1846. Ao terminar a guerra, estima-se uma população em torno de 231 mil paraguaios e 56 mil estrangeiros entre eles, brasileiros que por lá ficaram.
Também houve o caso de mulheres paraguaias que seguiram para o Brasil com militares brasileiros. Confira esta relação do quartel em Humaitá, de 6 outubro de 1870: "[...] A tropa, tendo como destino a Província do Rio Grande do Sul [...], com quatro oficiais e 159 praças, bem como 14 praças presos e 48 mulheres, sendo 28 paraguaias [...]".
E há os casos opostos aos dos 300 casamentos. São as mulheres brasileiras que, capturadas em Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul), por exemplo, acabaram se instalando e se casando no Paraguai. Ou os casos de mulheres brasileiras que seguiram seus maridos militares e participaram do conflito. Segundo o inglês George Thompson, "as sargentas garantiam a ordem nos acampamentos".
Ortolan tenta decifrar o que passava pela mente dos oficiais. Conclui que eles toleravam as mulheres seguindo seus maridos por um motivo, por assim dizer, utilitário:
Anos no campo de batalha exigiriam muito dos soldados.
Há variações no espaço, no tempo e nas diversas formas de ver o mundo para interpretar os fatos da guerra que desgraçou o Paraguai. Para uns, é a Guerra do Paraguai. Para outros, sobretudo os paraguaios, a Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai). No Brasil, durante o regime militar, o evento era visto como positivo para o país. Nos anos 80, essa visão se transformou. As interpretações predominantes indicavam um teor imperialista na atuação brasileira.
Para os paraguaios, não restam dúvidas: a guerra foi o eixo da decadência nacional, foi ela que forjou o atual país estereotipado pela imagem do contrabando, da falcatrua, da falsidade. Solano López é tido pela grande maioria como um herói, e não ditador, como consta nos livros escolares brasileiros, argentinos e uruguaios. A derrota levou o país, até então reconhecido pela independência e pelo pujante desenvolvimento autônomo, ao empobrecimento e ao comércio informal. Dizem os estudiosos locais que não restou alternativa que não a informalidade os paraguaios se tornaram párias do continente.
E, mesmo antes e durante o conflito, o isolamento era o custo da ambição autônoma. A guerra, entre 1864 e 1870, começou quando o Brasil realizou uma intervenção armada no Uruguai. Solano López, o presidente paraguaio, tentou agir como intermediador na disputa, o que o Brasil rechaçou. Então, López invadiu as fronteiras do Brasil (no hoje Mato Grosso do Sul) e da Argentina (em Corrientes). Em 1865, formou-se a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) para combater López, e a guerra só acabou com sua morte, em março de 1870. Mais de 1 milhão de pessoas padeceram nos cruentos confrontos.
Ortolan conta que, no pós-guerra, as forças brasileiras de ocupação ficaram até 1876 no país derrotado, o que provocou os centenas de casamentos. Em 1872, dos 55.796 estrangeiros no Paraguai, 30 mil eram soldados. Muitos estrangeiros que chegaram no imediato pós-guerra, vivandeiros especialmente, ficavam "escorados" nas forças de ocupação, para fins de abastecimento. Devido às péssimas condições do país, muitos retornaram com elas mas não todos.
Não há números que comprovem isso, mas, devido à xenofobia presente no Paraguai pré-Guerra, em relação aos cambás e negros brasileiros, estes não eram bem vindos ao país. Em parte, isso mudou no pós-Guerra, em razão da própria necessidade de capital estrangeiro como a única fonte de recuperação econômica no momento.
Alguns dados fornecidos pelos historiador: entre os anos de 1882 e 1907, chegaram 12.241 imigrantes ao porto de Assunção, dos quais 9.053 eram homens e 3.188 eram mulheres. Por sua vez, censo de 1 de março de 1886 mostra que havia 94.868 paraguaios e 137.010 paraguaias em seguida à guerra. E mais impactante havia entre os adultos (de 31 a 70 anos), depois da guerra, 12.569 homens e 40.105 mulheres. Quase quatro paraguaias para um paraguaio.
As mulheres participaram do maior conflito já ocorrido na América do Sul. Não só se encarregaram da confecção de uniformes e das plantações, mas participaram das frentes de combate. A presença feminina no conflito foi estimulada e aceita. Contam alguns relatos que as mulheres paraguaias participantes da guerra o fizeram pressionadas pelo governo e até por jornais como Cabichuí, El Centinela e o Semanário.
O Cabichuí de 12 de agosto de 1867 cita o "gesto magnífico, digno de figurar nas páginas da história", daquela "singular mulher da estirpe dos guarani, mãe de quatro filhos". Trata-se de Francisca Cabrera. Ao notar que os brasileiros cercavam seu vilarejo, Francisca se escondeu no mato com os filhos, armada de um punhal. Era um incentivo para as mulheres a guerrearem na base da lisonja. O Cabichuí relatou os feitos, também, de Barabara Alen e Dolores Caballero, que, atacadas por um jaguar, mataram-no e doaram sua pele a López.
LÉO GERCHMANN
Multimídia
Fonte: [historiacultural_go]
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