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domingo, 17 de janeiro de 2010


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Machado de Assis e Joaquim Nabuco


EUCLIDES SANTOS MENDES
DA REDAÇÃO
Joaquim Nabuco conviveu com alguns dentre os mais importantes intelectuais brasileiros de sua época. Com Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), estabeleceu uma relação marcada pela convergência de ideias "sobre a situação e os rumos da literatura brasileira" e por afinidades políticas e sociais, avalia o professor de letras na USP Hélio de Seixas Guimarães, em entrevista à Folha.
A amizade entre ambos -também marcada por afeto, respeito e admiração, manifestados na correspondência que trocaram (ed. Topbooks)- convergiu ainda na fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897. Machado foi o primeiro presidente da instituição e Nabuco, o primeiro secretário-geral. Autor de "Os Leitores de Machado de Assis" (Edusp/Nankin) -que ganhou o Prêmio Jabuti em 2005-, Guimarães também examina, na entrevista a seguir, "o traço mundano e até deslumbrado" em relação à Europa e aos EUA presente na personalidade de Nabuco.

 

FOLHA - Houve influência significativa de Joaquim Nabuco na obra de Machado de Assis e vice-versa?
HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES - Houve uma enorme afinidade intelectual entre os dois, das maiores entre os grandes intelectuais brasileiros da segunda metade do século 19, mas não diria que houve influência. Apesar das trajetórias e personalidades muito diferentes, eles estavam muito afinados.
Embora Nabuco fosse dez anos mais novo que Machado e tenha se dirigido a ele pela primeira vez numa situação desigual -quando Nabuco, aos 15 anos, estreava nas letras, e Machado já era um escritor conhecido-, a relação entre os dois foi sempre muito equilibrada, marcada pelo respeito mútuo e pela admiração recíproca.
Há muita convergência, por exemplo, entre o que pensam sobre a situação e os rumos da literatura brasileira no início da década de 1870.
O ensaio "Instinto de Nacionalidade", que Machado publicou em 1873, e "Camões e "Os Lusíadas'", que Nabuco publicou em 1872, fazem diagnósticos muito parecidos sobre os excessos e as limitações que o nacionalismo romântico trazia para a produção literária no Brasil.
FOLHA - Havia também uma convergência de ideias políticas e sociais entre ambos?
GUIMARÃES - Embora as ideias políticas e sociais de Machado precisem ser extraídas principalmente das entrelinhas dos seus textos, eu vejo muitas afinidades entre os dois. Penso que a visão pessimista que Nabuco expressa sobre o processo social brasileiro em "O Abolicionismo" tem muito a ver com o desencanto e o negativismo dos contos e romances de Machado escritos a partir da década de 1880.
Também vejo muitas similaridades entre a visão de Nabuco sobre os anos iniciais da República e o modo como Machado ficcionalizava episódios desses primeiros anos republicanos em um romance como "Esaú e Jacó" [1904].
Mas claro que há uma diferença fundamental: Nabuco é, antes de tudo, um publicista, procura dizer o que pensa com todas as letras; e Machado raramente diz explicitamente o que pensa, porque está interessado em fazer ficção.
FOLHA - Eram amigos pessoais?
GUIMARÃES - Sem dúvida foram grandes amigos, embora tenham convivido relativamente pouco, por conta dos longos períodos em que Nabuco esteve fora do país. A correspondência entre os dois é marcada por um afeto que Machado dedicou a pouquíssimos dos seus interlocutores. Nabuco estava entre os "happy few" que em algum momento mereceram de Machado o tratamento de "meu querido". E Nabuco retribuiu esse tratamento afetuoso. Além disso, foram companheiros e cúmplices na fundação e na consolidação da Academia Brasileira de Letras em seus primeiros anos.
FOLHA - Em que circunstâncias criaram a ABL?
GUIMARÃES - A Academia Brasileira de Letras foi fundada ainda na primeira década da República, num momento de muita turbulência política. Os escritores e intelectuais estavam divididos entre monarquistas e republicanos, ou entre parnasianos, naturalistas e simbolistas etc. Tanto Machado como Nabuco viram na sua fundação um modo de preservar um terreno comum para os vários grupos, de construir um lugar de interlocução literária e cultural mais ou menos protegido das disputas do mundo externo.
FOLHA - Como explicar o paradoxo entre a origem aristocrática de Nabuco e seu papel como reformador social?
GUIMARÃES - Como você diz, Nabuco foi principalmente um reformador social, e é importante lembrar que sempre atuou dentro dos limites institucionais. Seu prestígio internacional veio em grande parte do apoio que teve de instituições estrangeiras, como a "Anti-Slavery Society" [Sociedade Antiescravista], que o respaldou na luta contra a escravidão no Brasil. Nesse sentido, não vejo paradoxo entre sua origem, as relações que estabeleceu fora do Brasil e sua atuação a favor da abolição. O que fez foi atravessar uma barreira ideológica que muitos outros homens bem-nascidos como ele não atravessaram. Na biografia "Joaquim Nabuco - Os Salões e as Ruas", baseada em excelente pesquisa documental, Angela Alonso mostra muito bem a inserção social e a trajetória de Joaquim Nabuco. Apesar do berço aristocrático, ele tinha relativamente poucos recursos financeiros e passou boa parte da vida correndo atrás do seu sustento e do sustento da sua família. Era um aristocrata que teve de aprender a trabalhar, o que não é qualquer coisa no contexto escravista. Talvez isso ajude a compreender as aproximações que fez ou a simpatia que desenvolveu pelos que estavam à margem.
FOLHA - Mário de Andrade fez referência à chamada "moléstia de Nabuco", decorrente da formação, do fascínio e do sentimento de identificação que o estadista nutria pela Europa e, depois, pelos EUA, um pouco em detrimento do Brasil. Neste sentido, Nabuco seria uma espécie de antibrasileiro?
GUIMARÃES - Certamente havia um forte traço mundano e até deslumbrado em Nabuco. Era desses que, surgindo oportunidade, fazem questão de tagarelar em francês e inglês. Nesse sentido, é um tipo da elite brasileira que até hoje tem seus insignes representantes. Mas, sem dúvida, era um homem que tinha compromisso com o Brasil, ou pelo menos com um certo Brasil, que de todo modo era mais amplo e menos horrível que o Brasil vislumbrado pela maioria dos seus contemporâneos.
FOLHA - Esta influência externa na personalidade de Nabuco reitera certa visão do país como periferia do Ocidente?

GUIMARÃES - Muitos dos conflitos pessoais e intelectuais vividos por Nabuco têm a ver com os dramas de certo estrato da elite brasileira intelectualizada, que vive dilacerada entre a crença profunda de pertencer a uma certa ideia de Ocidente e o sentimento igualmente profundo de estar à margem desse mesmo Ocidente.
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