Um livro, ainda inédito no Brasil, sobre a penetração do fascismo nas  sociedades latino-americanas indica que a influência dessa ideologia no período  entreguerras foi maior no Brasil do que na Argentina, onde a população italiana  era proporcionalmente maior. 
Para o pesquisador Angelo Trento, autor do  capítulo sobre o Brasil no livro "Fascistas en América del Sur", a atitude  favorável dos párocos imigrantes, os convites do corpo diplomático e o grande  poder de persuasão dos notáveis da comunidade, como os empresários Francesco  Matarazzo (1854-1937) e Rodolfo Crespi (1874-1939), contribuíram para construir  o apoio maior dos italianos no Brasil ao fascismo, especialmente a partir dos  anos 30. 
Para a organizadora da coletânea, Eugenia Scarzanella, professora  da Universidade de Bolonha, as autoridades italianas em Buenos Aires não  souberam aproveitar o potencial que representava a maciça presença de italianos  no país (em 1927, quando a Argentina tinha 13 milhões de habitantes, 1,7 milhão  eram italianos). 
Trento, professor da Universidade de Nápoles, estudioso da  imigração italiana no Brasil, revela que Matarazzo e Crespi, os "tios da  América", não apoiaram o fascismo apenas com palavras, mas também com generosas  contribuições financeiras para organizações do regime na Itália e no Brasil.  
   FOLHA
  FOLHA - O fascismo foi um instrumento para a identidade e a  integração dos imigrantes italianos na sociedade brasileira?  
ANGELO TRENTO - O fascismo foi, certamente, um  instrumento de construção (e, para as camadas médias, de fortalecimento) de uma  identidade nacional que também envolvia as classes populares, que por muito  tempo, depois da unidade da Itália [no século 19], haviam permanecido ligadas a  uma dimensão regional, quando não local, expressa por meio de usos, costumes e  vários dialetos, segundo a região de nascimento. Com sua agressividade verbal,  porém, o governo de Mussolini também estimulou uma atitude de distanciamento em  relação à sociedade de acolhimento. Esse sentimento de estranhamento representou  a exceção e não a regra, mas não resta dúvida de que a aquisição de uma  consciência nacional acabou por identificar a italianidade com o fascismo.  Assim, as manifestações dos seguidores de Mussolini em terras brasileiras (como  em tantos outros países) se identificaram com hinos, desfiles e a ostentação de  camisas pretas, terminando por criar uma fricção com a população local. 
 FOLHA - A mudança do termo "emigrantes" para "italianos no exterior",  ocorrida em 1927, perdura até hoje na linguagem oficial do país. Seria uma forma  de ocultar o passado emigratório da Itália? 
TRENTO - A  utilização do termo "italianos no exterior" no lugar de "emigrantes" se  enquadrava no projeto fascista de exaltação da italianidade. Sem dúvida, a  operação também escondia a vontade de colocar em segundo plano as causas  econômicas e sociais da emigração, mas este não foi o motivo principal. Aliás, o  regime promoveu duas ideias: uma emigração qualificada e o fim da emigração  popular de massa, o que se enquadrava sob a óptica da política de potência  buscada por Roma. A ideia de que o excedente demográfico era uma justificativa  da emigração fazia parte dessa política. 
 FOLHA - Quantos italianos havia no Brasil no final da década de 20?  
TRENTO - Não houve um Censo no Brasil entre 1920 e 1940.  No entanto, estimativas confiáveis, como as elaboradas por Giorgio Mortara,  judeu italiano que emigrou para o Brasil após as leis raciais do regime fascista  em 1938, e um dos pioneiros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE), indicam que, em 1930, havia 435 mil italianos no país. 
 FOLHA - Por que a ideologia fascista conseguiu uma penetração maior  entre os imigrantes italianos no Brasil do que na Argentina?  
TRENTO - Porque a emigração italiana para o Brasil foi  mais tardia em relação àquela que se dirigiu para a Argentina. Como os italianos  chegaram antes àquele país, a imigração era marcada pelos ideais do  "Risorgimento" [processo de unificação da Itália] e de Giuseppe Mazzini  [1805-1872, considerado o apóstolo da unidade do país]. Também tinha um caráter  republicano e democrático. Portanto, quando as primeiras associações italianas  começam a se formar, os imigrantes que já estavam estabelecidos na Argentina  assumiram seu controle e conseguiram manter várias delas fora da órbita  fascista. Algumas foram, inclusive, direcionadas em sentido contrário, ou seja,  passaram a ser antifascistas. Há muitas razões para a maior penetração do  fascismo no Brasil, mas podemos mencionar uma fraqueza maior do antifascismo  italiano no Brasil, principalmente nos anos 1930, que se deve, em parte, a um  fluxo menor de exilados políticos para o Brasil em comparação à Argentina,  principalmente de esquerda e, em particular, de comunistas. Os indícios dessa  penetração maior da ideologia estão em uma tomada de posição mais firme por  parte dos jornais argentinos e das associações italianas em relação ao fascismo  (a imprensa antifascista, ou, de qualquer forma, não alinhada com o regime, teve  um impacto e uma circulação menores no Brasil do que na Argentina). No Brasil,  em meados dos anos 1930, as associações italianas estavam totalmente a favor do  fascismo, por convencimento ou por conveniência. Há ainda a observação do  próprio Mussolini, que expressou o seu desapontamento ao então embaixador  italiano na Argentina, em 1936: "Os italianos da Argentina não nos compreendem  nem nos amam. Se as coisas continuarem assim, vamos nos dirigir cada vez mais  aos italianos no Brasil". 
 FOLHA - O governo de Mussolini queria fazer do Brasil uma "nação  fascista" ligada a Roma ou nutria pretensões imperialistas?  
TRENTO - A ideia do fascismo era aproveitar o número  significativo de italianos que viviam e trabalhavam em alguns países da América  Latina para criar grupos de pressão e uma atmosfera favorável à Itália, sob a  forma de simpatias políticas e com fins econômicos e comerciais, posição já  presente na classe dirigente italiana a partir do final do século 19. Não havia  pretensões imperialistas nem de expansão territorial. 
 FOLHA - Qual era a imagem que o regime de Mussolini tinha da América do  Sul? 
TRENTO - Ao pesquisar a propaganda dos anos 1920 e,  sobretudo, dos anos 1930, parece evidente que toda a América Latina  (particularmente algumas nações, o Brasil em primeiro lugar) recebia uma grande  atenção.
Após 1929, a região passou a ser vista com um grande interesse, uma  vez que o regime estava convencido de que o enfraquecimento, em escala mundial,  dos postulados democráticos e liberais podia abrir horizontes interessantes para  o modelo totalitário italiano.
Roma se apresentou como alternativa à  liderança de Washington e de Londres, mas sem se colocar no mesmo patamar e até  sublinhando a ausência de qualquer vontade expansionista e de dependência. O  aparato teórico dessa manobra se baseava no conceito do panlatinismo, de forte  valor simbólico e propagandístico, que englobava a ideia de uma grande família  étnica, em contraposição ao pan-americanismo. 
 FOLHA - Em geral, a historiografia brasileira afirma que a ideologia  fascista só encontrou seguidores entre a elite da coletividade italiana,  enquanto as classes populares abraçaram o anarquismo. Isso é verdade?  
TRENTO - Foi apenas uma minoria que se empenhou no  movimento operário, defendendo posições anárquicas, anarcossindicalistas e  socialistas. De qualquer forma, isso aconteceu antes dos anos 1920  (caracterizados no Brasil por uma grande repressão). O fascismo encontrou sem  dúvida um vasto consenso entre a coletividade italiana e não apenas entre as  classes altas e as camadas médias, mas também entre a pequena burguesia (como na  Itália), principalmente comercial, e entre os próprios operários, principalmente  nos anos 1930. Vários fatores contribuíram para esse êxito: primeiro, a ausência  ou a fraqueza de um componente do "Risorgimento" na emigração que se dirigiu  para o Brasil, a qual, ao contrário do que aconteceu na Argentina e no Uruguai,  não havia antes dominado o mundo das associações regionais, orientando-o  politicamente de forma desfavorável ao regime. Em segundo lugar, influiu uma  obra de propaganda mais minuciosa, que se valeu não apenas de bolsas de estudo  concedidas aos jovens brasileiros, convites de viagem para jornalistas,  projeções de filmes e subsídios a jornais locais que falavam bem do regime, mas  também de iniciativas culturais (professores visitantes nas universidades  brasileiras) e empreendimentos que atingiam o imaginário coletivo, como as  travessias aéreas do Atlântico que tinham como meta o Brasil, realizadas por  pilotos italianos entre 1927 e 1931. Em terceiro lugar, o prestígio elevado de  que gozava Mussolini com a opinião pública, as classes dirigentes e os governos  estrangeiros influenciava principalmente os emigrantes. Enfim, no Brasil, havia,  mais que nos outros países de forte imigração italiana na América Latina, um  corpo diplomático altamente fascistizante depois de 1925. 
 FOLHA - Por que o corpo diplomático tinha um caráter mais fascista  particularmente no Brasil? 
TRENTO - Durante o fascismo, o  corpo diplomático italiano em todo o mundo foi conivente com o regime em vigor  ou, pelo menos, não lhe foi hostil, salvo raras exceções. A partir da metade dos  anos 1920, foram incorporados principalmente cônsules, mas também embaixadores,  que não eram de carreira, que entraram por fidelidade política. No Brasil se  registrou, eu diria que por acaso, uma concentração desses diplomatas. 
 FOLHA - O sr. escreve que, no Brasil, havia muitos imigrantes  "convertidos" ao fascismo. Como as autoridades italianas os convertiam?  
TRENTO - As "conversões" aconteciam com várias  categorias, mas principalmente com alguns jornais étnicos, que antes eram  adversários do "duce" [Mussolini], muitas associações, alguns intelectuais e  pessoas que tinham uma atividade de esquerda. Assim como na Itália, alguns  militantes do movimento operário adotaram o fascismo em virtude do seu  antiparlamentarismo e anti-individualismo iniciais, e da ilusão de um futuro  pansindicalismo. É mais fácil explicar a adesão das pessoas da classe alta,  mesmo as que no começo eram pouco favoráveis, das camadas médias e da pequena  burguesia, à ideia de nação, à exaltação do conceito de ordem e à busca de uma  política de potência. 
 FOLHA - Por que a estrutura dos "fasci" e do Partido Nacional Fascista  cresceu tanto no Brasil? 
TRENTO - Os "fasci" [núcleos que  representavam o Partido Nacional Fascista da Itália] no Brasil cresceram  principalmente em número de sedes: em 1924 já eram 40, ou seja, um décimo de  todos os "fasci" italianos no exterior, e dez anos depois quase chegavam a 90.  No entanto, o número de inscritos [os membros em regra com o pagamento das  mensalidades eram entre 5.000 e 6.000, no máximo] permaneceu irrisório com  relação à quantidade de italianos residentes [558 mil no Censo de 1920 e 325 mil  no de 1940]. A proliferação dos "fasci" estava relacionada com a sua dispersão  territorial em uma área muito grande como é o território brasileiro. Já a Opera  Nazionale Dopolavoro teve um bom sucesso, não tanto em termos de sede [19 em  todo o Brasil no final dos anos 1930], mas de inscritos [7.000 apenas na cidade  de São Paulo, em 1935]. Este último dado é importante, uma vez que esta  estrutura ocupava um raio de ação muito amplo na organização das horas vagas das  classes populares (cinema, teatro, excursões, festas dançantes e atividades  esportivas). No que se refere ao aspecto financeiro, os imigrantes ricos não  foram particularmente generosos com os "fasci", a fim de evitar acusações de que  fomentavam paixões e conflitos políticos alheios à terra que lhes havia  acolhido. Eles preferiam enviar doações significativas diretamente ao fascismo  na Itália, seguindo o exemplo dos membros mais conhecidos na comunidade, como  Francesco Matarazzo e Rodolfo Crespi. 
 FOLHA - Mussolini simpatizava com Vargas; mas tinha consciência de seu  lado nacionalista? 
TRENTO - Sim, essa preocupação existia  por parte das autoridades fascistas e as correspondências diplomáticas são uma  prova disso. Mas o nacionalismo getulista nunca entrou em rota de colisão com as  atividades fascistas no Brasil. Até na iminência da entrada do Brasil na guerra  e depois disso, excetuando situações particulares como o Rio Grande do Sul, as  normas adotadas para os cidadãos do Eixo foram aplicadas com menos energia para  os italianos, em comparação aos alemães e japoneses. 
 FOLHA - O governo de Mussolini contribuiu financeiramente com a Ação  Integralista Brasileira (AIB). O que havia por trás disso?  
TRENTO - A AIB foi financiada por Mussolini inclusive  após ser dissolvida por Vargas, mas deve-se dizer que o fascismo nunca confiou  muito no partido ou nos seus dirigentes. 
FOLHA - Qual foi a marca  deixada pelos fascistas italianos na sociedade e na vida pública brasileiras?  
TRENTO - As marcas mais fortes foram deixadas nos anos  1930, com a evocação ao corporativismo; a inclusão, ao pé da letra, da "Carta do  Trabalho" fascista na Constituição brasileira da era Vargas; mas também no  controle da imprensa, nas técnicas de criação do consenso, nos mecanismos de  propaganda. Outros elementos, como por exemplo o partido como instrumento  importante de canalização do consenso, não foram imitados.
saiba+COLABORAÇÃO PARA A  FOLHA,
EM BUENOS AIRES A Itália vive uma renovação no  estudo sobre o fascismo: segundo Eugenia Scarzanella, responsável pela  compilação dos artigos de "Fascistas en América del Sur", até poucos anos atrás  os historiadores italianos privilegiavam o estudo do antifascismo, provavelmente  motivados a trabalhar com temas considerados "politicamente  corretos".
Assim, negligenciaram aspectos relevantes do movimento  fascista, como a disseminação da ideologia entre emigrados, afirma Scarzanella.  A obra (edição argentina Fondo de Cultura Económica, 352 págs., 52 pesos, R$ 25)  resulta de um projeto de pesquisa financiado pelo Ministério da Universidade e  da Pesquisa Científica da Itália.
"Os ataques ao historiador Renzo De  Felice (1929-96), cujos estudos revelaram o consenso dos italianos em relação ao  regime fascista, contribuíram para essa situação", afirma. "O fascismo oferecia  um instrumento de identidade e integração dos imigrantes na sociedade de  acolhida."
Segundo a historiadora, "o regime fascista levou adiante uma  política eficaz entre os italianos no exterior; para eles a Itália de Mussolini  era um país que podia se apresentar como moderno e protagonista da política  mundial."
O livro reúne textos que tratam do Brasil, da Argentina e do  Peru e usa como fontes os documentos diplomáticos italianos, os arquivos dos  países sul-americanos e as coleções das imprensas étnicas locais.
 "Se um homem não sabe o que uma coisa é,  já é um avanço do conhecimento saber o que não é." (Jung)