Capítulos de História do Império - Sérgio Buarque de (Prosa e Verso, O Globo, 12/06/2010)

domingo, 13 de junho de 2010


Monumento inacabado

Livro reúne manuscritos inéditos de Sérgio Buarque de Holanda sobre o Império

*Guilherme Freitas*

Diz muito sobre o perfeccionismo de Sérgio Buarque de Holanda o fato de ele considerar que "Do Império à República", estudo modelar sobre a decadência
da monarquia publicado em 1972, precisava ser melhorado. Conhecido pelo esmero com que escrevia - e reescrevia - seus textos, ele trabalhou por anos
na nova obra, mas ao morrer, em 1982, deixou-a inacabada, com cerca de 150 páginas datilografadas.

Este material é reunido agora pela primeira vez em "Capítulos de história do Império" (Companhia das Letras, organização de Fernando A. Novais), que será
lançado, junto com uma nova edição de "Visão do Paraíso - Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil" (Companhia das Letras),
nesta segundafeira, às 16h30m, na Biblioteca Nacional, com debate reunindo os historiadores Evaldo Cabral de Mello, Ronaldo Vainfas, Laura de Mello e
Souza e Lilia Schwarcz.

Em "Capítulos de história do Império", Sérgio Buarque desenvolve um dos temas centrais de "Do Império à República", editado originalmente como parte
da coleção "História geral da civilização brasileira", que abordou os períodos colonial, imperial e republicano em 11 volumes coordenados por ele
e pelo historiador Boris Fausto nas décadas de 1960 e 1970. Naquela obra, o autor critica o uso feito por D. Pedro II do poder moderador e atribui a
seus excessos a derrocada do regime (ficou famosa sua descrição do imperador como tendo "lastro demais para pouca vela"). Os textos reunidos no novo
livro mostram que essa premissa conduziria a uma análise ampla da história política do Império, dividida em três partes: a primeira, mais desenvolvida,
tem 104 páginas e quatro capítulos ("Para uma préhistória do Império no Brasil", "A nação e os partidos", "Entre a Liga e o Progresso" e "Por graça
de Deus..."); a segunda tem 14 páginas intituladas "Crise do regime"; e a terceira tem 37 páginas de anotações.

*Clássico "Visão do Paraíso" também ganha nova edição*

Organizador de "Capítulos de história do Império", o historiador Fernando Novais comemora o resgate de uma obra que, como escreve na introdução à nova
edição, comprova que o trabalho de Sérgio Buarque se aproxima do modelo ideal de reconstrução histórica, por "inserir o particular no geral, sem
perder sua especificidade; mobilizar o geral para a compreensão do particular, sem dissolvê-lo no seu interior".

- A publicação de "Capítulos de história do Império" tem enorme importância, porque "Do Império à República" não teve na sua época a repercussão
merecida. A nova edição, com um posfácio de Evaldo Cabral de Mello, que faz uma leitura vertical do estudo, possibilita uma análise jamais feita sobre
esse aspecto da obra de Sérgio Buarque - diz por telefone Novais, pesquisador do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).

Professora do departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), Lilia Schwarcz diz que o livro inacabado ilumina o método de trabalho
de um historiador que sempre preferiu delinear problemas a propor soluções:
- Este livro mostra o trabalho de um pesquisador minucioso, que abriu caminho para uma história cultural e das mentalidades no país. Um escritor
muito cioso de pequenos detalhes que iluminam grandes estruturas. Um intelectual que não se contenta apenas com estruturas politicas e explora
diversos ângulos da historiografia - diz Lilia por telefone.

Um dos maiores exemplos desta busca por novos ângulos da história, aponta Lilia, está em "Visão do paraíso", reeditado agora. Publicado em 1959, num
momento em que predominavam na academia nacional análises históricas e sociológicas de viés economicista, o estudo concentrava-se num campo até
então nunca explorado: o imaginário dos colonizadores.

- Sérgio Buarque nos deixou um exemplo de pioneirismo. Em "Visão do Paraíso", ele trata de uma representação construída num determinado período,
mas com a qual convivemos até hoje: a ideia de uma natureza edenizada, de um lado, e de uma humanidade pervertida, de outro - observa Lilia, organizadora
da edição comemorativa dos 70 anos de "Raízes do Brasil" lançada pela Companhia das Letras em 2006.

Autor de um dos posfácios da nova edição de "Visão do paraíso" (o outro é de Laura de Mello e Souza), Ronaldo Vainfas destaca em seu texto a influência
da historiografia alemã e italiana sobre o pensamento de Sérgio Buarque, em detrimento da francesa, cuja presença na obra seria apenas "modesta".

Vainfas lembra que o livro - "muito elogiado, mas pouco lido, citado ou discutido" em seu tempo - foi revalorizado por uma série de estudos
desenvolvidos no Brasil a partir da década de 1980 sobre a história das mentalidades.

Professor do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Vainfas destaca o exemplo deixado por Sérgio Buarque não só para os
historiadores, mas para todos os intelectuais dedicados ao estudo dos temas brasileiros.

Em entrevista por e-mail, descreveo como "um intelectual que demonstrou que a produção do conhecimento é inseparável da liberdade de pensamento e que
nunca se deixou levar por modismos e dogmatismos de nenhum tipo": - A maior lição de Sérgio Buarque, além da excelência da vasta obra, em si mesma, é a
de que o trabalho do historiador não deve se confinar nesse ou naquele campo específico, apesar da crescente especialização que hoje marca a pesquisa
histórica no Brasil e no mundo.

Sérgio Buarque fez história socioeconômica, cultural, social e política sem nenhum parti pris de que esta ou aquela era melhor ou explicava melhor a
sociedade brasileira. Sérgio Buarque fazia história e ponto.

*"DESDE QUE FOI PRECIPITADA A maioridade legal do segundo imperador, porque até pouco antes faltaram no Brasil condições para que se formassem governos de partido, começou a suscitar-se a crença de que na origem de todos os vícios de nosso sistema político se achavam as contendas entre as facções e
a acirrada disputa pelas posições, a animarem constantemente o vaivém das situações movediças.

Essa crença que, em épocas mais tardias, irá parecer de todo alheia aos verdadeiros princípios democráticos, não constituía então uma novidade nem
era especificamente brasileira. Até num país como os Estados Unidos, que, para muitos dos nossos homens públicos, oferecia o modelo de um regime
liberal e da autêntica democracia, havia prevalecido durante longo tempo o ponto de vista de que as competições políticas são intrinsecamente imorais e
de que uma sociedade perfeita há de ser feita de unidade e consenso, guiados pelos chefes eleitos da nação. O tempo, no entanto, já tinha varrido ali e
em muitas partes essa confiança sagrada nas virtudes da unanimidade e do consenso, relegando-as cada vez mais para o rol das velharias decrépitas, só
acariciada ainda pelos absolutistas empedernidos.

No Brasil, essa animosidade contra a existência atuante dos partidos políticos, que chegará a andar em moda nas duas décadas imediatas à
maioridade, quando assume, não raro, matizes liberais, só reaparecerá depois entre uns poucos que abertamente hão de optar pelos sistemas autocráticos e
militaristas. São exceção os casos como o de um inimigo confesso de tais sistemas que, ainda em 1877, quando a monarquia, entre nós, começa a beirar
o colapso, dá respostas negativas a estas perguntas que ele mesmo se propõe:
"Deveras serão necessários os partidos políticos em uma sociedade democrática? Serão um bem ou um mal? Serão legítimos ou ilegítimos?"*

*Trecho do livro "Capítulos de história do Império", de Sérgio Buarque de Holanda*
Fabrício Augusto Souza Gomes
E-mail:
fabricio.gomes@gmail.com
 
Fonte: [historia_uerj]
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Livro do Exército ensina a louvar ditadura


Livro do Exército ensina a louvar ditadura

Colégio militar usa material de história com perfil diferente do indicado pelo MEC

ANGELA PINHO
DE BRASÍLIA

A história oficial contada aos alunos dos 12 colégios militares do país omite a tortura praticada na ditadura e ensina que o golpe ocorrido em 1964 foi uma revolução democrática; a censura à imprensa, necessária para o progresso; e as cassações políticas, uma resposta à intransigência da oposição.

É isso que está no livro didático "História do Brasil -Império e República", utilizado pelos estudantes do 7º ano (antiga 6ª série) das escolas mantidas com recursos públicos pelo Exército.

Nelas, estudam 14 mil alunos, entre filhos de militares transferidos ou de civis aprovados em concorridos vestibulinhos. De cada aluno é cobrada uma taxa mensal de R$ 143 a R$ 160, da qual estão isentos os que não podem pagar. Mas 80% das despesas são custeadas pelo Exército.

As escolas militares poderiam utilizar livros gratuitos cedidos pelo Ministério da Educação a todas as escolas públicas. Mas, para a disciplina de história, optaram pela obra editada pela Bibliex (Biblioteca do Exército), que deve ser adquirida pelos próprios alunos. Na internet, o preço é R$ 50, mais um caderno de exercícios a R$ 20. O Exército afirma que o material "atende adequadamente às necessidades do ensino de História no Sistema Colégio Militar".

O livro de história mais adquirido pelo MEC para o ensino fundamental, da editora Moderna, apresenta a tomada do poder pelos militares como um golpe, uma reação da direita às reformas propostas por João Goulart (1961-64). A partir disso, diz a obra, seguiu-se um período de arbítrio, com tortura e desaparecimentos, em que a esquerda recorreu à luta armada para se manifestar contra o regime.

Já a obra da Bibliex narra uma história diferente: Goulart cooperava com os interesses do Partido Comunista, que já havia se infiltrado na Igreja Católica e nas universidades.

Do outro lado, as Forças Armadas, por seu "espírito democrático", eram a maior resistência às "investidas subversivas".

No caderno de exercícios, uma questão resume a ideia. Qual foi o objetivo da tomada do poder pelos militares? Resposta: "combater a inflação, a corrupção e a comunização do país".

TORTURA

A obra não faz menção à tortura e ao desaparecimento de opositores ao regime militar. Cita apenas as ações da esquerda: "A atuação de grupos subversivos, além de perturbar a ordem pública, vitimou numerosas pessoas, que perderam a vida em assaltos a bancos, ataques a quartéis e postos policiais e em sequestros".

A censura é justificada: "Nos governos militares, em particular na gestão do presidente Médici [Emílio Garrastazu, 1969-1974], houve a censura dos meios de comunicação e o combate e eliminação das guerrilhas, urbana e rural, porque a preservação da ordem pública era condição necessária ao progresso do país."

As cassações políticas são atribuídas à oposição do MDB (Movimento Democrático Brasileiro). "Embora o governo pregasse o retorno à normalidade democrática, a intransigência do partido oposicionista motivou a necessidade de algumas cassações políticas", diz trecho sobre o governo Ernesto Geisel (1974-79).

Para o historiador Carlos Fico, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o livro usado nos colégios militares é problemático tanto do ponto de vista das informações que contém como pela forma como conta a história.

"O principal motivo do golpe foi o incômodo causado pela possibilidade de que setores populares tivessem uma série de conquistas."

Mas, para Fico, mais grave ainda é a forma como o livro narra o período, com uma "história factual" carente de análise, focada apenas na ação dos governos. "Trata-se de uma modalidade desprezada inclusive pelos bons historiadores conservadores", avalia.

A "história oficial" e os argumentos interessados
HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
Permanece aberta a questão do estatuto epistemológico da história. Definir se ela é uma ciência e o grau de objetividade de seus juízos envolve uma controvérsia que dificilmente vai se resolver antes do fim dos tempos.

Numa linha mais pragmática, pode-se afirmar que é do confronto entre diferentes concepções de historiografia e de como ela se relaciona com os fatos que se forja a visão que cada época elabora de seu próprio passado. Assim surge a história oficial, que sempre poderá ser revista de acordo com novas interpretações, numa demonstração de que às vezes nem o passado é imutável.

Essa frouxidão epistêmica, típica das chamadas ciências do espírito, está longe contudo de significar um vale-tudo. Por mais difícil que seja depurar a ideologia constante de qualquer discurso, enquanto a linguagem conservar algum valor, haverá narrativas mais ou menos precisas e relatos mais ou menos honestos.

É perfeitamente razoável debater, por exemplo, os rumos que tomava o governo de João Goulart. Pode-se também discutir o alcance e o significado social do chamado Milagre Brasileiro. São questões que comportam legitimamente interpretações mais à esquerda ou à direita.

A argumentação politicamente interessada, porém, através de eufemismos, omissões ou falsificações, pode dar lugar a crimes de lesa-historiografia. É o que faz o livro adotado pelo Exército quando deixa de informar que a "Revolução levada a efeito, não por extremistas, mas por grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem" derrubou pelas armas um regime democraticamente eleito -o que, em bom português é golpe de Estado.

Ainda pior, a obra simplesmente deixa de mencionar que setores ligados às Forças Armadas se valeram de tortura para desbaratar os grupos de esquerda, o que, independentemente das intenções dos militantes, era proibido pelas leis editadas pelo próprio regime militar.

Em 2007, setores da mídia conservadora protestaram com razão contra os excessos esquerdistas de um livro didático, "Nova História Crítica", que foi distribuído para algumas escolas pelo MEC. Será curioso observar como reagirão agora ao mesmo erro com sinal invertido.

Não há juízo de valor, afirma comandante DE BRASÍLIA
O coronel Silva Alvim, comandante do colégio militar de Brasília, o maior do Exército, afirma que as escolas militares abordam "apenas o fato histórico", sem juízos de valor sobre o regime militar.

Questionado sobre a omissão dos torturados e desaparecidos no livro do 7º ano, diz que se trata de um tema proibido. "Dentro desse culto aos valores e tradições do Exército, esse tipo de assunto [tortura e desaparecidos] nós buscamos não tratar. Até porque, no âmbito do Exército brasileiro, essas questões não são permitidas", diz.

Curiosamente, no ensino médio, a apostila adotada pelo colégio militar de Brasília, feita pelo sistema Poliedro, fala em "ditadura" e "tortura". Mas "não enfaticamente", responde o coronel ao ser indagado sobre a diferença de abordagem.

Questionado sobre o livro, o Centro de Comunicação Social do Exército afirmou apenas que a linha didático-pedagógica da obra, adotada desde 1998, "atende adequadamente às necessidades do ensino de História no Sistema Colégio Militar".

O Ministério da Defesa disse, via assessoria de imprensa, que o teor do livro "será levado ao conhecimento das autoridades competentes".

Fabrício Augusto Souza Gomes
E-mail: fabricio.gomes@gmail.com
 
Fonte: GEHB
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