Mindlin, um mecenas que não fazia nada sem alegria

domingo, 28 de fevereiro de 2010


Mindlin, um mecenas que não fazia nada sem alegria
Seu sacrifício pessoal rendeu ótimos títulos publicados com a ajuda de sua
biblioteca, entre eles os volumes da História da Vida Privada no Brasil.
Antonio Gonçalves Filho, de O Estado de S. Paulo

Divulgação/Márcio Scavone
José Mindlin (1914-2010)

SÃO PAULO - O ex-libris de José Mindlin, selo pessoal que o bibliófilo
colocou em sua coleção de livros raros, não poderia identificar melhor quem
foi o empresário, intelectual e acadêmico morto neste domingo, 28, em São
Paulo, aos 95 anos, após prolongada doença: "Je ne fait rien sans gayeté"
(Não faço nada sem alegria). De fato, quem teve o privilégio de conhecer e
conviver com Mindlin, sabe que caiu bem na vida do maior colecionador de
livros do Brasil a escolha dessa máxima de Montaigne, retirada de seus
Ensaios (do qual sua biblioteca tem um raríssimo exemplar, de 1588, que
pertenceu ao crítico Saint-Beuve). Talvez a única coisa que fez sem alegria
foi deixar este mundo sem ver concluído o prédio da Brasiliana USP, projeto
acadêmico da Universidade de São Paulo que reúne a maior coleção de livros e
documentos sobre o Brasil, um moderno edifício de 20 mil metros quadrados na
Cidade Universitária sob a responsabilidade da Biblioteca Brasiliana Guita e
José Mindlin, órgão da Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da
USP.
Sonho maior do bibliófilo, a coleção Brasiliana, composta por 17 mil títulos
(ou 40 mil volumes) de literatura e manuscritos históricos doados pelo
colecionador, é o maior legado deixado por Mindlin além da herança ética que
o Brasil recebe desse empresário, jornalista, ex-secretário de Cultura de
São Paulo e membro das academias Brasileira e Paulista de Letras. Desde
adolescente avesso ao autoritarismo, Mindlin começou sua carreira
jornalística aos 15 anos como redator do Estado, driblando a censura durante
a Revolução de 1930. Da sala de Julio de Mesquita, então diretor do jornal,
ele transmitia instruções para a sucursal do Rio - em inglês, para confundir
a escuta telefônica. Outro exemplo de sua conduta ética foi o pedido de
demissão do cargo de secretário de Cultura do governo Paulo Egydio quando o
jornalista Vladimir Herzog foi morto pela ditadura militar, em outubro de
1975.
Posteriormente, ao ser convidado pelo governo civil de Fernando Collor para
ocupar o cargo de ministro da Fazenda, Mindlin, traumatizado com cargos
públicos, declinou da oferta, ocupando-se de sua biblioteca de 40 mil
títulos, que manteve por mais de sete décadas com a ajuda de sua mulher
Guita e, após a morte desta, em 2006, por mais quatro anos até ficar doente.
Instalada em sua casa no Brooklin, na qual morou por mais de 60 anos, a
biblioteca era o grande orgulho de Mindlin. Nela repousam raridades como a
primeira edição de Os Lusíadas, de 1572, um original do padre Antonio
Vieira, os originais de Sagarana, de Guimarães Rosa, corrigidos à mão pelo
autor, além do primeiro livro que Mindlin comprou num sebo quando tinha 13
anos, Discurso sobre a História Universal, escrito em 1740 pelo bispo
francês Jacob Bossuet. Oito décadas depois, outros 40 mil livros juntaram-se
ao exemplar raro de Bossuet, muitos deles já disponíveis para consulta
pública na Brasiliana Digital, a biblioteca virtual desenvolvida com o
acervo físico doado pelo empresário à USP em 2006.
Mindlin não colecionava livros raros por fetiche. Queria dividir o prazer da
leitura com milhares de pessoas. Mesmo como empresário, que transformou a
Metal Leve de uma pequena fábrica de pistões, nos anos 1950, numa empresa
gigantesca do setor de autopeças, Mindlin buscou o ideal de uma gestão
democrática em que os operários pudessem ter voz ativa nas discussões sobre
seu destino. Com a globalização, a Metal Leve não sobreviveu ao assédio do
capital estrangeiro e, em 1996, foi comprada por sua maior concorrente, a
alemã Mahle. O empresário, então com 82 anos, mais da metade dedicados à
Metal Leve, não se aposentou, participando dos conselhos de administração de
grupos - O Estado de S. Paulo, entre eles - ou de instituições como a
Sociedade de Cultura Artística, da qual seu pai foi um dos fundadores.
Filho de um dentista judeu de origem russa, apaixonado por música e pintura,
Mindlin herdou a paixão pela cultura do pai, que costumava receber em casa
escritores como Mário de Andrade. Esse contato próximo com grandes
estudiosos dos problemas brasileiros o transformou em farejador de raridades
ao topar, ainda adolescente, em Paris, com o clássico História do Brasil, a
narrativa de frei Vicente de Salvador, de 1627, que o fez se interessar pelo
passado do País. Desde então, obcecado pela ideia de construir a maior
biblioteca dedicada a estudos brasileiros, aproveitava todo tempo livre em
sua viagens internacionais para garimpar títulos que nem a Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro sonhou em ter no acervo. Seu sacrifício pessoal
rendeu ótimos títulos publicados com a ajuda de sua biblioteca, entre eles
os volumes da História da Vida Privada no Brasil, cujo conteúdo foi
pesquisado na casa do Brooklin, frequentada pelos maiores intelectuais do
País.
Mecenas, Mindlin, um dos articuladores da Fundação Vitae, que concedia
bolsas para a realização de projetos culturais, ele publicou livros de
grandes amigos poetas, como Carlos Drummond de Andrade, e artistas visuais
como a gravadora Renina Katz. Seu acervo de obras em papel tem peças raras
de artistas como Goeldi, Lescoschek, Lívio Abramo e Iberê Camargo. Mindlin
costumava dizer que essa escolha se devia mais à mulher Guita, com quem teve
70 anos de vida em comum. Seu negócio mesmo era a leitura, hábito que,
infelizmente, foi obrigado a abandonar nos últimos anos por problemas de
saúde. Antes que seus olhos enfraquecessem, ele leu, porém, mais de cinco
vezes sua obra preferida, os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de
Proust, da qual guardava uma raríssima primeira edição francesa. Depois de
Proust, Balzac ocupou sua imaginação por mais tempo. Em sua inúmeras visitas
ao órgão do Banco do Brasil responsável pelas importações, o empresário da
Metal Leve, obrigado a longas horas de espera nos corredores, devorou quase
toda A Comédia Humana.
Nascido em São Paulo, em 1914, Mindlin estudou Direito na USP e fez cursos
de extensão universitária na Universidade de Columbia, em Nova York. Aos 32
anos, financiado por um empresário, conseguiu um sócio e fundou a livraria
Parthenon, em São Paulo, especializada em livros raros. A guerra havia
acabado há um ano e famílias europeias descapitalizadas se desfaziam de seu
patrimônio artístico e literário. Foi assim que Mindlin trouxe para o Brasil
muitas raridades que colocou à venda na Parthenon, sempre avisando o
comprador que poderia procurá-lo no futuro, caso quisesse se desfazer do
livro. O conflito entre vendedor e colecionador cresceu com o tempo. Mindlin
não resistiu e foi atrás de todos as obras raras vendidas, recomprando-as
para sua biblioteca particular quando virou empresário.
Foi quando vendeu a Metal Leve, dirigida por durante 46 anos, que o
empresário começou a pensar no futuro de sua biblioteca. Inspirado no modelo
da John Cater Brown Library, de Providence (Rhode Island), que também
começou como coleção particular e hoje é uma das maiores do mundo em
documentos raros sobre a América, Mindlin, que integrava o conselho da
biblioteca, pensou em fazer um acordo com a USP para transferir seu acervo.
Parte dessa história está contada no livro Memórias Esparsas de uma
Biblioteca, um dos três volumes que Mindlin dedicou à maior coleção privada
do Brasil - os outros dois são Uma Vida entre Livros e Destaques da
Biblioteca de Guita e José Mindlin.
Sempre procurado por pesquisadores brasileiros e estrangeiros atrás de suas
raridades bibliográficas, Mindlin, um cidadão do mundo que dominava seis
línguas, foi um dos primeiros empresários a atravessar a Cortina de Ferro
durante a Guerra Fria, tentando aproximar o Brasil de países como a extinta
União Soviética. Teve também um papel fundamental no processo de
redemocratização do País ao assinar, durante a ditadura, um manifesto pela
abertura política junto a outros oito empresários.