Dissertação de mestrado (Unisinos) relata casos de amor entre brasileiros e paraguaias durante a guerra.

terça-feira, 23 de março de 2010


Zero Hora.
Porto Alegre, 20 de março de 2010. Acesso em 21.03.10
 
ESTUDO

Entre o amor e a guerra

Dissertação de mestrado na Unisinos relata casos pitorescos de amor entre brasileiros e paraguaias durante o conflito que devastou o país vizinho entre 1864 e 1870

Se você descrê da máxima hippie "faça o amor, não faça a guerra", saiba que ela não se resume a um urro libertário das décadas de 60 e 70 do século passado. Foi, também, prática comprovada nos anos 60 e 70, mas do século anterior, o 19. Se você pensa que a Guerra do Paraguai se limita a escaramuças e política, creia que aqueles difíceis anos entre 1864 e 1870 tiveram muito romance. Para os mais céticos, quem comprova a tese do amor se sobrepondo à guerra e rompendo fronteiras em litígio é um historiador gaúcho que buscou na cúria do bispado de Assunção os registros de relações quase impossíveis entre paraguaias e militares brasileiros. Foram pelo menos 300 casamentos desse tipo.

O estudo "Sob o Olhar da Imprensa e dos Viajantes – Mulheres Paraguaias na Guerra do Paraguai", dissertação de mestrado do historiador Fernando Lóris Ortolan na Unisinos, é recheado de casos pitorescos, ocorridos em 1870, último ano da guerra. Um deles é o pedido formal de casamento elaborado pelo capitão Honório José Teixeira, do Rio de Janeiro, e pela paraguaia María Felipe Iralgo. "Achando-se amasiados e ela já grávida, desejando-se unir a esse matrimônio e estando próxima a retirada do suplicante para o Brasil, pede a Vossa Reverendíssima o pedido desta formalidade", dizem, em carta ao bispo.

Outro pedido formalizado devidamente por escrito ao bispado de Assunção foi feito pelo cabo José Joaquim da Silva. "Com o favor de Deus, querem casar-se o cabo do Esquadrão da 1ª Bateria de Infantaria José Joaquim da Silva, filho de José Duarte da Silva e Maria Cristóvão da Silva, natural de Pernambuco e atualmente em Humaitá, com Maria Dorothea, filha de Izidro Franco e Carlota Benitez Izidro, natural de Pilar, República do Paraguai, sendo seus pais mortos".

Mestre em História pela Unisinos, Ortolan, nascido em Guaporé, 34 anos atrás, é doutorando sobre o mesmo tema (mulheres na Guerra do Paraguai e os efeitos liberais) na Universidade Federal do Paraná, Estado brasileiro colado ao país vizinho.

Ao falar das mulheres, dos romances, das guerras e dos seus efeitos, Ortolan se perfila entre os que choram o destino guarani. Em tom lamentoso, conta que a população paraguaia, quando se iniciou a guerra, girava em torno de 420 mil a 450 mil habitantes, baseando-se no censo de 1846. Ao terminar a guerra, estima-se uma população em torno de 231 mil paraguaios e 56 mil estrangeiros – entre eles, brasileiros que por lá ficaram.

Também houve o caso de mulheres paraguaias que seguiram para o Brasil com militares brasileiros. Confira esta relação do quartel em Humaitá, de 6 outubro de 1870: "[...] A tropa, tendo como destino a Província do Rio Grande do Sul [...], com quatro oficiais e 159 praças, bem como 14 praças presos e 48 mulheres, sendo 28 paraguaias [...]".

E há os casos opostos aos dos 300 casamentos. São as mulheres brasileiras que, capturadas em Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul), por exemplo, acabaram se instalando e se casando no Paraguai. Ou os casos de mulheres brasileiras que seguiram seus maridos militares e participaram do conflito. Segundo o inglês George Thompson, "as sargentas garantiam a ordem nos acampamentos".

Ortolan tenta decifrar o que passava pela mente dos oficiais. Conclui que eles toleravam as mulheres seguindo seus maridos por um motivo, por assim dizer, utilitário:

– Anos no campo de batalha exigiriam muito dos soldados.

Há variações no espaço, no tempo e nas diversas formas de ver o mundo para interpretar os fatos da guerra que desgraçou o Paraguai. Para uns, é a Guerra do Paraguai. Para outros, sobretudo os paraguaios, a Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai). No Brasil, durante o regime militar, o evento era visto como positivo para o país. Nos anos 80, essa visão se transformou. As interpretações predominantes indicavam um teor imperialista na atuação brasileira.

Para os paraguaios, não restam dúvidas: a guerra foi o eixo da decadência nacional, foi ela que forjou o atual país estereotipado pela imagem do contrabando, da falcatrua, da falsidade. Solano López é tido pela grande maioria como um herói, e não ditador, como consta nos livros escolares brasileiros, argentinos e uruguaios. A derrota levou o país, até então reconhecido pela independência e pelo pujante desenvolvimento autônomo, ao empobrecimento e ao comércio informal. Dizem os estudiosos locais que não restou alternativa que não a informalidade – os paraguaios se tornaram párias do continente.

E, mesmo antes e durante o conflito, o isolamento era o custo da ambição autônoma. A guerra, entre 1864 e 1870, começou quando o Brasil realizou uma intervenção armada no Uruguai. Solano López, o presidente paraguaio, tentou agir como intermediador na disputa, o que o Brasil rechaçou. Então, López invadiu as fronteiras do Brasil (no hoje Mato Grosso do Sul) e da Argentina (em Corrientes). Em 1865, formou-se a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) para combater López, e a guerra só acabou com sua morte, em março de 1870. Mais de 1 milhão de pessoas padeceram nos cruentos confrontos.

Ortolan conta que, no pós-guerra, as forças brasileiras de ocupação ficaram até 1876 no país derrotado, o que provocou os centenas de casamentos. Em 1872, dos 55.796 estrangeiros no Paraguai, 30 mil eram soldados. Muitos estrangeiros que chegaram no imediato pós-guerra, vivandeiros especialmente, ficavam "escorados" nas forças de ocupação, para fins de abastecimento. Devido às péssimas condições do país, muitos retornaram com elas – mas não todos.

– Não há números que comprovem isso, mas, devido à xenofobia presente no Paraguai pré-Guerra, em relação aos cambás e negros brasileiros, estes não eram bem vindos ao país. Em parte, isso mudou no pós-Guerra, em razão da própria necessidade de capital estrangeiro como a única fonte de recuperação econômica no momento.

Alguns dados fornecidos pelos historiador: entre os anos de 1882 e 1907, chegaram 12.241 imigrantes ao porto de Assunção, dos quais 9.053 eram homens e 3.188 eram mulheres. Por sua vez, censo de 1 de março de 1886 mostra que havia 94.868 paraguaios e 137.010 paraguaias em seguida à guerra. E – mais impactante – havia entre os adultos (de 31 a 70 anos), depois da guerra, 12.569 homens e 40.105 mulheres. Quase quatro paraguaias para um paraguaio.

As mulheres participaram do maior conflito já ocorrido na América do Sul. Não só se encarregaram da confecção de uniformes e das plantações, mas participaram das frentes de combate. A presença feminina no conflito foi estimulada e aceita. Contam alguns relatos que as mulheres paraguaias participantes da guerra o fizeram pressionadas pelo governo e até por jornais como Cabichuí, El Centinela e o Semanário.

O Cabichuí de 12 de agosto de 1867 cita o "gesto magnífico, digno de figurar nas páginas da história", daquela "singular mulher da estirpe dos guarani, mãe de quatro filhos". Trata-se de Francisca Cabrera. Ao notar que os brasileiros cercavam seu vilarejo, Francisca se escondeu no mato com os filhos, armada de um punhal. Era um incentivo para as mulheres a guerrearem na base da lisonja. O Cabichuí relatou os feitos, também, de Barabara Alen e Dolores Caballero, que, atacadas por um jaguar, mataram-no e doaram sua pele a López.

LÉO GERCHMANN


Fonte: [historiacultural_go]