Retratos de um outro Brasil | |
Expedições científicas pioneiras aos sertões ajudaram a formar a identidade nacional Bem vestidos, cabelos aparados, portando aparelhos científicos esquisitos e acompanhados por animais mais estranhos ainda, os integrantes da Comissão Científica do Império - formada por pesquisadores do Museu Histórico Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - foram vistos quase como extraterrestres pelos moradores de Fortaleza. Eles compunham a primeira expedição científica exclusivamente brasileira, que agora começa a ser mais bem estudada. Há cerca de 150 anos aquele tipo de visitante não era comum no Ceará. Ainda mais trazendo dromedários e argelinos usando roupas do deserto. - Foi, de fato, um choque total - conta Lorelai Kury, historiadora e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz. - Eram homens imponentes, eruditos, carregando aparelhagem científica de última geração, tão sofisticada quanto pesada. E havia os dromedários, que faziam parte de uma tentativa de aclimatação, em voga na época. Os dromedários, vale ressaltar, não resistiram à vida no Ceará e ao solo duro da região. Mas a expedição, retratada agora no livro "Comissão Científica do Império" (Andrea Jakobsson Editora), foi mais uma entre tantas, que, movidas pelos mais diversos interesses, marcadas por tantos acertos quanto erros, ajudaram a formar a identidade nacional, apresentando o Brasil aos brasileiros. - As pioneiras expedições pelo Brasil, embora não levassem exatamente a bandeira da nacionalidade, tiveram um efeito indireto na discussão sobre ela - afirma José Pádua, professor de História da UFRJ. - Elas coletaram e traduziram informações sobre o território nacional, que foram posteriormente utilizadas por intelectuais e políticos brasileiros, além dos próprios cientistas. D. Pedro II privilegiou ciência feita no país A expedição ao Ceará - que aconteceu entre 1859 e 1861 - era formada por especialistas em botânica, zoologia, etnografia e astronomia. Entre eles, estavam o engenheiro Guilherme Capanema, o poeta Antônio Gonçalves Dias, o pintor José dos Reis Carvalho, o renomado botânico Freire Alemão e o naturalista Manuel Ferreira Lagos, idealizador da missão. O objetivo principal da Comissão Científica do Império - realizada numa época de grandes inovações, como a navegação a vapor e a fotografia - era fazer ciência brasileira, sem interferência e liderança estrangeira, tão comum até então. - Havia ali um sentimento nacional, pioneiro, alimentado pelos ares do romantismo - conta Lorelai, que organizou o livro. - Todos criticavam os estrangeiros por ficarem pouco tempo no Brasil e se acharem especialistas no tema. A ideia, bancada por D. Pedro II, mecenas da expedição, era que só quem vive no lugar e passa tempo nele pode descrevê-lo melhor. Para isso, esforços não foram medidos: o Imperador liberou verbas para a compra de microscópios, lunetas e outros instrumentos necessários para as pesquisas de campo. Gonçalves Dias e o matemático Giacomo Raja Gabaglia compraram na Europa o que havia de mais moderno. Na bagagem, trouxeram também uma valiosa biblioteca científica, com cerca de dois mil exemplares. Parte dos problemas da expedição começou aí. - Era um material muito delicado e pesado, difícil de carregar, mesmo havendo criados para cada um dos pesquisadores - assinala a historiadora Magali Romero Sá, que assina um dos capítulos do livro. - Esse material era precariamente carregado em mulas e cavalos. Em Fortaleza, base da expedição, o grupo de cerca de 23 pessoas ficou por seis meses. Depois, seus integrantes se dividiram em grupos e partiram para o interior, ficando dois anos explorando o sertão cearense. - Nunca ficou claro por que o Ceará foi escolhido, mas, na época, buscava-se regiões pouco exploradas por outros viajantes. Além do mais, existiam boatos de que havia minas de ouro no interior do estado - diz Lorelai. Ouro, não havia. Mas a missão conseguiu reunir um vasto material, incluindo uma expressiva coleção zoológica, botânica e geológica, além de peças de artesanato e desenhos dos mais variados. Faltou, porém, unificar tamanho material - algo só feito agora, com o livro. Além disso, não foi feita nenhuma grande publicação com os resultados da expedição, levando muitos a considerarem um fracasso. - A expedição ficou conhecida por não ter alcançado tudo o que se esperava dela - diz a historiadora e pesquisadora Kaori Kodama. - Ela foi injustamente subestimada, já que não havia suporte para analisar e organizar o material recolhido. Mesmo assim, essa expansão para dentro fortaleceu a ideia de uma nação brasileira, ainda incipiente na época. Preguiçosos e inovadores Parte considerável dessa "expansão para dentro" é resumida pelo livro "Grandes expedições à Amazônia brasileira" (Metalivros) - O critério para a seleção foi incluir as expedições que mais contribuíram, entre erros e acertos, para nossa visão da Amazônia e do próprio Brasil - conta Meirelles. Na obra estão desde as expedições catequizadoras do Padre Antônio Vieira (1653-1661) às viagens do sertanista Couto de Magalhães (1861-1871), além de incursões feitas por Euclides da Cunha (1905) e Mário de Andrade (1927). - Euclides da Cunha e Mário de Andrade foram inovadores - diz o autor. - Euclides descreve o caboclo e relata o sofrimento do seringueiro. Já Mário é preguiçosíssimo, suas expedições são breves caminhadas enquanto os barcos abastecem, mas suas anotações são gloriosas. São retratos do Brasil se conhecendo melhor. Falando em conhecer melhor e voltando à expedição ao Ceará, o livro "Comissão Científica do Império" descreve também um aspecto curioso dos expedicionários que vai além da mera observação sobre a zoologia, a botânica e os costumes da região. - Eram todos muito namoradores, menos Freire Alemão, que era mais velho. Todos os jornais da época relatam isso - afirma Lorelai. - Eram homens interessantes, bem vestidos, representando o Império. Dá para imaginar o alvoroço causado nas jovens locais. Há até relatos de pais enfurecidos querendo impor casamentos e irmãos tentando tomar satisfações. (Carlos Albuquerque) (O Globo, 6/3) |
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