Fonte: JORNAL ZERO HORA 31 de julho de 2010 | N° 16413
Gilberto Freyre e a Questão Nacional
Sociólogo brasileiro, homenageado da Festa Literária Internacional de Parati deste ano, liderou movimento que defendia Brasil regionalista
Gilberto Freyre é mais conhecido pelo que escreveu sobre relações raciais no Brasil. Figura polêmica, alguns o celebram por ter criado a imagem de um país miscigenado no qual a mistura racial seria altamente positiva e outros o vilipendiam por ter transmitido a ideia de que no Brasil a escravidão foi mais branda que em outros países e por ter ajudado a criar o que é chamado de "mito da democracia racial no Brasil". Temas ainda candentes, como atesta a discussão em torno do Estatuto da Igualdade Racial, recentemente aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente da República. Uma face menos conhecida de Freyre diz respeito a como ele pensou a organização social do Brasil. É interessante que sua posição vá na contramão do que era voz corrente na época em que escreveu sobre o tema.
Durante o Império, havia forte centralização de poder. O Brasil era dividido em províncias, cujos presidentes eram nomeados pelo imperador. Essa centralização foi em parte responsável por uma série de revoltas que ocorreram durante o Império de D. Pedro II, entre elas a Revolução Farroupilha (1835 1845).
A proclamação da República iniciou um processo de descentralização política e administrativa que significou o fortalecimento do regionalismo. A República Nova, iniciada com a Revolução de 1930, reverteu essa tendência e acentuou uma crescente centralização nos mais variados níveis. É a partir desse período que um aparelho de Estado mais forte é criado e que o poder se desloca crescentemente do âmbito regional para o nacional.
Nessa época era preciso repensar o país que experimentava um processo de consolidação política e econômica e que teria de enfrentar as consequências da crise de 1929 e da II Guerra Mundial. O nacionalismo ganhava ímpeto e o Estado se firmava. Foi ele que tomou para si a tarefa de constituir a nação. Essa tendência se acentuou muito com a implantação do Estado Novo, em 1937, com medidas que aumentaram a centralização política e administrativa. No plano da cultura e da ideologia, a proibição do ensino em línguas estrangeiras, a introdução da disciplina de Moral e Cívica, a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda ajudaram a criar um modelo de nacionalidade centralizado a partir do Estado.
As modificações que ocorrem no período de 1930 a 1945 são profundas. Assim, quando no fim da II Guerra Mundial termina o Estado Novo e é eleita uma Assembleia Nacional Constituinte com a tarefa de pensar um novo modelo de organização administrativa e política, o Brasil já é um país diferente. Começávamos a perder nossa vocação agrária, a manufatura já sendo responsável por 20% do produto doméstico bruto. A construção de rodovias e a abolição da autonomia dos Estados ajudaram a unificar o mercado interno bem como a diminuir o poder das oligarquias locais. A migração campo-cidade se acentuou e criou um novo protagonista no cenário político: as massas urbanas que seriam interpeladas como agentes sociais pelo populismo.
Nas décadas de 20 e 30 do século 20, vários intelectuais estão interessados na organização social e política brasileira, especificamente no que diz respeito a como pensar as regiões num país de dimensões continentais como o Brasil. A preocupação é em geral com a possibilidade do separatismo e o consequente esfacelamento da nação. Monteiro Lobato, em seu livro América (1931), manifesta esse tipo de preocupação ao criar um personagem norte-americano dono de uma metalúrgica, que afirma que "Os países de grande território (...) correm o risco do esfacelamento, da subdivisão em pequenas repúblicas (...)". Lobato, que vivia nos Estados Unidos, fascinado pela industrialização, comenta a esse respeito: "Pensei no mineiro, no paulista e no gaúcho. (...) E compreendi o alcance das palavras do grande metalurgista. O Brasil, devido a sua grande extensão territorial e à segregação, por falta de transporte, dos seus vários núcleos de gente semeada pelos portugueses iniciais, estava cada vez mais ameaçado de perder a unidade. Esses núcleos não se conheciam uns aos outros e todos se tinham como superiores aos demais".
A tônica dos autores nesta época é, em geral, a preocupação de o Brasil se fragmentar, devido à falta de integração econômica, política e principalmente cultural. Gilberto Freyre destoa desse quadro e propõe uma perspectiva inversa. Em 1926 ele lidera um grupo que promove em Recife o 1º Congresso Brasileiro de Regionalismo. O movimento de 1926 tem um sentido, de certa maneira, inverso à Semana Modernista de São Paulo de 1922. Esta ocorre em uma cidade que já começava a despontar como uma pujante metrópole industrial e exaltava a inovação que atualizaria a cultura brasileira em relação ao Exterior. Os modernistas, além de atacar o passadismo, recusavam o regionalismo, por acreditarem que era através do nacionalismo que se chegaria ao universal. Já o Manifesto Regionalista é lançado no Recife, capital mais desenvolvida do Nordeste de então, e desejava, ao contrário, ressaltar a centralidade da região na organização social do país e preservar não só a tradição em geral, mas especificamente a de uma região agrária e mais atrasada. Para Freyre, que 50 anos chamaria o movimento de "regionalista, tradicionalista e, a seu modo, modernista", ser moderno não era romper com o passado, mas incorporar a tradição.
O Manifesto Regionalista desenvolve basicamente dois temas interligados: a defesa da região como unidade de organização nacional e a conservação dos valores regionais e tradicionais do Brasil em geral e do Nordeste em particular.
A análise do documento é extremamente elucidativa. Ele começa afirmando a existência no Recife de um movimento de reabilitação dos valores regionais e tradicionais do Nordeste. Assim, todas as terças-feiras um "grupo apolítico de regionalistas se reúne em volta da mesa do chá com sequilhos e doces tradicionais da região (...) preparados por mãos de sinhás" para discutir de forma descontraída problemas desta parte do Brasil.
Apesar do tom "apolítico" e modesto, Freyre é categórico a respeito da ambição do grupo: "Nosso movimento não pretende senão inspirar uma nova organização do Brasil". Essa proposta de reorganização do país visando consolidar a sociedade brasileira é formulada através de um modelo político-administrativo calcado na região enquanto elemento constitutivo da nação, pois é o conjunto de regiões e não uma coleção arbitrária de Estados que formaria de fato o Brasil.
A necessidade de reorganizar o Brasil primeiro tema central do Manifesto e preocupação constante de pensadores do fim do século 19 e começo do século 20 - decorreria do fato de ele sofrer, desde que é nação, as consequências maléficas de modelos estrangeiros que lhe são impostos sem considerar suas peculiaridades e sua diversidade física e social.
Como se pode perceber, a formulação de um sistema alternativo de organização do Brasil está ancorada na denúncia da importação de modelos alienígenas considerados incompatíveis com nossas peculiaridades. A discussão sobre a conveniência ou não de importar modelos e ideias estrangeiros é um tema recorrente entre nossos intelectuais e dele o Manifesto Regionalista tratará também ao analisar a questão da tradição.
Ao frisar a necessidade de uma articulação inter-regional, Freyre toca um ponto importante e atual, ou seja, como propiciar que as diferenças regionais convivam no seio da unidade nacional em um país de dimensões continentais como o Brasil. Esse tipo de preocupação comparece também em trabalhos posteriores desse autor. Numa conferência proferida em 1944 nos Estados Unidos e sugestivamente intitulada Unidade e Diversidade, Nação e Região, ele afirma que "uma região pode ser politicamente menos do que uma nação. Mas vitalmente e culturalmente é mais do que uma nação; é mais fundamental que a nação como condição de vida e como meio de expressão ou de criação humana. Um filósofo no legítimo sentido, tem que ser super ou supranacional; mas dificilmente ele pode ser suprarregional no sentido de ignorar as condições regionais da vida, da experiência, da cultura, da arte, e do pensamento que lhe cabe julgar ou analisar".
É justamente a uma conclusão semelhante que chegaram os modernistas a partir da segunda fase do movimento, quando se deram conta de que a única maneira de ser universal é, antes, ser nacional. Guardadas as proporções, o que Freyre está afirmando é que o único modo de ser nacional num país das dimensões do Brasil é ser primeiro regional.
Mas seu modo de argumentar é, de certa maneira, o inverso dos modernistas, já que não está alicerçado em uma atualização cultural segundo valores modernos vindos do Exterior, mas, ao contrário, na crítica aos malefícios do progresso e da importação de costumes e valores estrangeiros. Assim, por exemplo, ao analisar o Nordeste, ele afirma que esta região estaria perdendo a consciência de seus valores históricos e de suas possibilidades devido à padronização decorrente da conquista industrial do mundo e aos efeitos de influências semelhantes no Brasil: "O perigo da monotonia cultural ou da excessiva unificação de cultura no continente americano provém da influência do industrialismo capitalista norte-americano, largamente dominado pela ideia de que o que é bom para o norte-americano deve ser bom para todos os outros povos da América".
Para quem acompanhou os acalorados debates sobre os destinos do Brasil durante a fase populista de nossa história, o final dessa citação lembra as críticas que se faziam aos políticos que afirmavam que "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Claro que a perspectiva de Freyre e a dos populistas são bastante distintas. O primeiro foi frequentemente rotulado de "conservador", ao passo que os segundos se consideravam "progressistas". Entretanto, ambos têm em comum a crítica à influência estrangeira.
A conservação dos valores regionais e tradicionais do Brasil em geral e do Nordeste em particular é o segundo grande tema do Manifesto Regionalista. Freyre começa falando em defender os valores e as tradições do Nordeste "do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófilo de dirigentes que, entre nós, passam por adiantados e progressistas pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira. A novidade estrangeira de modo geral. De modo particular, nos Estados ou nas províncias, o que o Rio ou São Paulo consagram como 'elegante' e como 'moderno': inclusive esse carnavalesco Papai Noel que, esmagando com suas botas de andar em trenó e pisar em neve, as velhas lapinhas brasileiras, verdes, cheirosas, de tempo de verão, está dando uma nota de ridículo aos nossos natais de família, também enfeitados agora com arvorezinhas estrangeiras mandadas vir da Europa ou dos Estados Unidos pelos burgueses mais cheios de requififes e de dinheiro".
Trata-se de uma crítica ao hábito das nossas elites de arremedar os costumes que julgam modernos, tendência também apontada por Maria Isaura Pereira de Queiroz no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro por ocasião da vinda da família real no começo do século 19. A crítica lembra também um pouco a noção das "ideias fora do lugar" de Roberto Schwarz no que diz respeito à adoção de ideologias alienígenas, que eram então re-elaboradas para se adequarem às necessidades locais.
É significativo que ao fazer a defesa intransigente dos valores do Nordeste e da necessidade de preservá-los, Freyre escolha itens do que é considerado atraso e/ou símbolo de pobreza. Assim, por exemplo, ele tece um elogio aos mocambos como exemplo de contribuição do Nordeste à cultura brasileira, no sentido de abrigo humano adaptado à natureza tropical e como solução econômica do problema da casa pobre: "a máxima utilização, pelo homem, na natureza regional, representada pela madeira, pela palha, pelo cipó, pelo capim fácil e ao alcance dos pobres". Defende também ruas estreitas e critica a tendência já então existente de construir grandes avenidas e a mania de alterar nomes regionais de ruas e logradouros (como Beco do Peixe Frito ou Rua da Saudade) para nomes de poderosos do momento, ou datas politicamente insignificantes.
Ao se erigir em bastião da defesa do popular que precisa ser protegido do "mau cosmopolitismo e do falso modernismo", o autor do Manifesto constrói uma oposição que em última análise se resume a: popular e regional equivalem a tradicional (e bom), ao passo que cosmopolitismo equivale a modernismo (e ruim). Sua posição se aproxima muito da visão dos românticos que se ocuparam da cultura popular na Europa do século 19 e para os quais a autenticidade contida nas manifestações populares constituiria a essência do nacional. Nessa perspectiva, segundo Canclini, o povo é visto como "uma totalidade homogênea e autônoma, cuja atividade espontânea seria a mais alta expressão dos valores humanos e o modelo de vida ao qual deveríamos regressar".
A comparação com os românticos europeus do século 19 é esclarecedora. Analisando a posição deles na Alemanha daquele século, Ortiz mostrou como naquela época a problemática da nacionalidade era uma questão central já que a nação alemã não existia enquanto unidade política e cultural: "É nesse contexto que surge o debate sobre a cultura popular; parte da intelligentzia alemã volta sua atenção para as tradições populares e através delas procura legitimar uma cultura autenticamente nacional". O mesmo autor assinala que "enquanto o modernismo se vincula ao avanço e à consolidação de uma burguesia urbana, Gilberto Freyre representa a dimensão de um poder aristocrático rural que se vê ameaçado. O conflito pode ser claramente descrito como a luta entre os intelectuais de uma ordem social que se faz ultrapassar pela história, e os intelectuais orgânicos de um novo tipo de sociedade que se constrói".
Pode-se argumentar que há pelo menos duas leituras do Manifesto Regionalista. A primeira veria nele um documento elaborado por um intelectual que representa uma aristocracia rural e que vê a ordem social passar por transformações que colocam em xeque o padrão tradicional de dominação. Sua reação é de cunho tradicionalista e se assemelha à reação aristocrática frente às mudanças decorrentes da urbanização e da industrialização e que estavam vazadas numa crítica à perda de valores comunitários e da pureza cultural supostamente existentes no passado.
Nessa linha de interpretação, pode-se enxergar na defesa da região uma estratégia de quem vê as oligarquias nordestinas perderem cada vez mais o poder e tenta opor ao poder central uma união das periferias regionais. De modo semelhante, pode-se buscar na defesa intransigente das tradições e valores populares uma posição saudosista que procura erigir uma cultura popular cristalizada em símbolo de nacionalidade a ser contraposto a uma modernidade definida como estrangeira.
Sem descartar nenhum desses argumentos, uma segunda leitura ressaltaria, entretanto, que por trás da orientação conservadora do Manifesto estão temas que continuam sendo muito atuais no Brasil. É justamente na fusão de uma perspectiva conservadora com o levantamento de questões ainda não resolvidas no Brasil que reside a originalidade do Manifesto Regionalista.
De fato, o Manifesto suscita uma série de questões que são recorrentes em nossa história: Estado unitário versus federação, nação versus região, unidade versus diversidade, nacional versus estrangeiro, popular versus erudito, tradição versus modernidade.
Continuamos discutindo a formulação de modelos para a nação e esse debate acaba inevitavelmente passando pela discussão do que é nacional (e, portanto, autêntico para uns, mas atrasado para outros) e o que é estrangeiro (e, portanto, espúrio para uns, mas moderno para outros). Ou seja, continuamos girando em torno da questão da identidade nacional. Essa questão é reposta e re-atualizada à medida que novos contextos são criados.
Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro da Academia Brasileira de Ciências
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