Artigo: Vasco é autor da revolução que profissionalizou o futebol

domingo, 19 de dezembro de 2010


Vasco é autor da revolução que profissionalizou o futebol
 
O estádio lotado no jogo do Vasco contra o Fluminense, em 1923

O Vasco da Gama foi um time que transformou a história do futebol brasileiro. Segundo o historiador João Manuel Casquinha Malaia Santos, a caminhada do clube entre os anos 1915 e 1934 definiu as características do esporte no Brasil. Graças ao Vasco, o mundo do futebol percebeu que conceber o esporte como negócio poderia produzir grandes espetáculos, lotar estádios, gerar renda para os clubes, dar prestígio aos dirigentes e sócios e até abrir meios para que pessoas das camadas menos abastadas do Rio de Janeiro conquistassem relativa e aparente visibilidade. A ascensão do time também significou para os portugueses a reafirmação de sua identidade na sociedade brasileira.

Malaia pesquisou o tema em sua tese Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934), realizada pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O estudo foi baseado em análises de documentos dos acervos de times cariocas e europeus, de documentos da Biblioteca Nacional, e da documentação do Arquivo Nacional.

De acordo com o pesquisador, até que o Vasco iniciasse o que ficou conhecido como Revolução Vascaína, o futebol praticado entre os clubes da principal liga do Rio de Janeiro, A Liga Metropolitana de Desportes Terrestres (LMDT), era quase uma exclusividade dos membros da elite carioca. Segundo o pesquisador, "A Revolução Vascaína colaborou para a transformação desse quadro".
"Iniciada pelo português Raul Campos, presidente do clube em 1919, ela foi o conjunto de medidas introduzidas pelo clube que culminaram no desenvolvimento do esporte como profissional no país, transformando o futebol no mais conhecido espetáculo de massa do Brasil."

A pesquisa mostra que os times que faziam parte da LMDT eram formados, em sua maioria, por jogadores brancos, alfabetizados e que exerciam profissão não braçal. Ou seja, representavam os membros das classes mais abastadas da sociedade.

As análises de Malaia revelaram que, contrariando a maré, Raul Campos percebeu que poderia utilizar o talento de homens pobres, oriundos do subúrbio do Rio de Janeiro, aliado a suas necessidades financeiras, para montar uma equipe de jogadores dedicada integralmente aos treinos e aos jogos. O Vasco passou então a contratar essas pessoas, mesmo que por debaixo dos panos, pagando-os para jogar. "O valor do salário era melhor que o pago por um serviço braçal fora dos campos, mesmo que muito baixo em relação ao que o clube começou a ganhar com o sucesso da equipe", revela o historiador.

Em 1922, o time foi campeão da série B da primeira divisão

Os negócios de Campos
No início da presidência de Campos, que Malaia chama de "o verdadeiro business man português", o Vasco ainda não era um dos grandes times do futebol carioca. "Mas a dedicação exclusiva dos jogadores, incentivada pelos salários, os capacitou para produzir os maiores 'shows' que os campos poderiam receber até então. E, além da inegável habilidade diferenciada dos jogadores, os jogos do Vasco começaram a contar com uma torcida cada vez maior", diz o pesquisador. "O povo no campo atraía o povo na arquibancada, e logicamente o Vasco e os outros clubes passaram a perceber isso", completa. "Inclusive, a partir do momento em que o futebol se torna um espetáculo, os casos de violência aumentam, mas existiam desde o início do futebol", afirma.

A ascensão do time formado por negros e pobres preocupou a elite que "achava que o futebol era dela", afirma o autor do estudo. Mesmo com todo o talento evidenciado nos jogos, o clube dos portugueses e suburbanos enfrentou muitas dificuldades para participar tanto da LMDT quanto da mais tarde Associação Metropolitana de Esportes (AMEA), uma liga criada em 1924 praticamente para excluir os jogadores vascaínos do futebol dos grandes clubes. "Os vários episódios com os quais o Vasco se deparou, como a restrição que determinava que sem estádio próprio o time não participava da liga, revelam a montagem da sociedade naquela época. Negros e pobres não tinham o mesmo espaço que os membros da elite tinham na comunidade carioca".

Mas foi a própria lógica capitalista que mudou tal situação. De acordo com o estudo, em 1927, a construção do Estádio do São Januário, considerado na época o maior estádio de futebol da América Latina, mostrou a força do time e tornou seu sucesso ainda mais inegável. "O estádio foi o resultado da mobilidade da comunidade dos sócios, como nunca visto antes na história de um clube. Ele foi totalmente construído com doações dos vascaínos, com os melhores materiais e melhor arquitetura", salienta o pesquisador.

Os jogadores vascaínos celebram a inauguração do São Januário, o maior estádio da América Latina naquela época

Com o estádio próprio, a renda do clube era cada vez maior. Essa situação fez com que, para a principal Liga, ter o Vasco como um dos componentes passasse a ser até uma questão de necessidade. Afinal, como diz o historiador, "a venda de ingressos faz o capital circular no universo dos clubes, e isso é muito do que uma liga deseja". "Os jogos do Vasco eram com certeza os que mais vendiam ingresso", complementa Malaia.

Profissionalizado, mas não valorizado
Apesar da luta pela profissionalização dos jogadores, da popularização dos campos e das arquibancadas, a diretoria e os sócios do clube continuavam elitizados. No período entre o final da República Velha e o início da Era Vargas, os jogadores vascaínos, "verdadeiros artistas, responsáveis pela ascensão do time no Brasil e do futebol brasileiro até mesmo na Europa, não tinham seu espetáculo traduzido em suas contas bancárias", diz o pesquisador.

Segundo Malaia, essa não valorização do jogador do Vasco, assim como aconteceu também em outros clubes, reflete que a inserção do negro, morador do subúrbio, no universo do futebol se limitava aos campos e estava inserida na própria lógica capitalista. "Com a profissionalização, isso ficou mais evidente. O jogador torna-se empregado, e não sócio, abrindo espaço para que a discriminação continuasse mesmo no cotidiano do próprio clube".

Além disso, o pesquisador aponta que diversos episódios revelavam o descuido e desleixo que o clube tinha para com os jogadores, caso esses se machucassem em campo ou tivessem qualquer outro problema de saúde que os impedisse de jogar. Dessa forma, o aumento de ingressos vendidos não significava, para "empregados do clube", melhoria das condições de trabalho, ou mesmo de salário. Malaia conta que essa situação fez surgir, em meados da década de 1930, algumas tentativas de formação de sindicatos, por parte dos jogadores. "Isso não se consolidou porque o Brasil estava mergulhado no contexto da presidência de Getúlio Vargas, com seus sindicatos pelegos, controlados pelo Estado", explica.

A orientação do trabalho foi da professora Esmeralda Moura. A defesa aconteceu no dia 07 de junho de 2010 .

As imagens foram obtidas pelo pesquisador no acervo do Centro de Memórias do C. R. Vasco da Gama, no acervo do Centro de Memória do Fluminense Football Club e na página online da Biblioteca Nacional.

Mais informações: (21) 8116-3664, email jmalaia@gmail.com