ENTREVISTA: ERIC HOBSBAWM - A crise do capitalismo e a importância atual de Marx

segunda-feira, 6 de outubro de 2008


ENTREVISTA: ERIC HOBSBAWM

A crise do capitalismo e a importância atual de Marx

Data: 29/09/2008

Em entrevista a Marcello Musto, o historiador Eric Hobsbawm analisa a
atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando
nos últimos anos, mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. E
fala sobre a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: "Marx não
regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se
compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas
políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do
desenvolvimento capitalista".

Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É
presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito
da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas
obras, encontra-se a trilogia acerca do "longo século XIX": "A Era da
Revolução: Europa 1789-1848" (1962); "A Era do Capital: 1848-1874"
(1975); "A Era do Império: 1875-1914 (1987) e o livro "A Era dos
Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), todos traduzidos em
vários idiomas.

Entrevistamos o historiador por ocasião da publicação do livro "Karl
Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy
150 Years Later" (Os Manuscritos de Karl Marx. Elementos fundamentais
para a Crítica da Economia Política, 150 anos depois).

Nesta conversa, abordamos o renovado interesse que os escritos de Marx
vêm despertando nos últimos anos e mais ainda agora após a nova crise
de Wall Street. Nosso colaborador Marcello Musto entrevistou Hobsbawm
para Sin Permiso.

Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989,
quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx
regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni
que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do
"marxismo-leninismo", não só tem recebido atenção intelectual pela
nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente
interesse. Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um
número especial a Marx, com um título provocador: "O pensador do
terceiro milênio?". Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa
organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram
os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil
espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na
classificação geral e o primeiro na categoria de "relevância atual".

Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial
que tinha como título "Ein Gespenst Kehrt zurük" (A volta de um
espectro), enquanto os ouvintes do programa "In Our Time" da rádio 4,
da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em
uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse
que, paradoxalmente, "são os capitalistas, mais que outros, que estão
redescobrindo Marx" e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do
homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte frase:
"Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz".
Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse
renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de
interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em
cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno
que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova
"demanda de Marx", do ponto de vista político?

Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento do interesse público
por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos
membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi
provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da
publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica
internacional particularmente dramática em um período de uma
ultra-rápida globalização do livre-mercado.

Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI,
com base na análise da "sociedade burguesa", cento e cinqüenta anos
antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes,
especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados
com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros
sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual
eles operam.

A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx.
Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na
maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela
conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado,
assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que
afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados "novos
movimentos sociais", como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão
lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de
seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença
no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o
capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo
tempo, o "proletariado", dividido e diminuído, deixou de ser crível
como agente histórico da transformação social preconizada por Marx.

Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes
movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente
baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não
significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande
clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em
países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos
Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra
Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos
anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.

Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável
investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu
tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu
que o nascimento de uma economia internacional globalizada era
inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo
geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por
políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises
econômicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a
crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a
crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos
empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e
agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto
dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está
baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar
a explicar as profundas contradições do mundo atual?

Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma
vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos
socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo
capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda
considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto
que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx
está consideravelmente - eu diria, principalmente - baseado na atual
crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que
foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode
transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o
fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga,
inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas
esquecidas desde os anos trinta.

As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos
neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e
desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e
injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre
mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e
mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer
"retorno a Marx" será essencialmente um retorno à análise de Marx
sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade -
incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do
desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas
auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista
poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em
1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a
história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações
humanas possa ser definitivo para todo o sempre.

Marcello Musto: Você não acha que, se as forças políticas e
intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que
poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx,
estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da
realidade atual?

Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na
medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra
forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas
sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente
da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria
substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente
parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os
elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista.

Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca
do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em
que as economias "socialistas" foram organizadas sob o chamado
"socialismo realmente existente". Quanto aos objetivos do socialismo,
Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração
e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas
potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e
suas palavras mantêm seu poder de inspiração.

No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a
esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser
tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra
maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista
de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do
desenvolvimento capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que
ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e
completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de
construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de "O
Capital". Como mostram os "Grundrisse", aliás. Inclusive, um Capital
completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original
de Marx, talvez excessivamente ambicioso.

Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência
atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em
anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um
colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como
um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas,
teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo
de globalização produzida pelo capitalismo.

Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior
interesse entre os novos leitores e comentadores são os "Grundrisse".
Escritos entre 1857 e 1858, os "Grundrisse" são o primeiro rascunho da
crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho
inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre
temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação
inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx,
continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do
fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua
crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?

Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os "Grundrisse" provocaram
um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por
duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não
publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma
massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma
outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do
marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam
simplesmente ser descartados. Puderam, portanto, ser usados por
marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da
análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado
de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e
oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate,
fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas
importantes que não foram considerados no "Capital", como por exemplo
as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você
organizou (Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of
Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva
York, Routledge, 2008).

Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito por vários
especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua
composição, você escreveu: "Talvez este seja o momento correto para
retornar ao estudo dos "Grundrisse", menos constrangidos pelas
considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de
Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev".
Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os
"Grundrisse" "trazem análise e compreensão, por exemplo, da
tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além
do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer
já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de
tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais
circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais
além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na
"Ideologia Alemã". Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito
corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim,
qual poderia ser o resultado da releitura dos "Grundrisse" hoje?

Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do que um punhado de
editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta
grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou
leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o
geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da
situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos
prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente,
somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.

Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é
importante ler Marx hoje?

Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante
universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá
sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas
econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma
prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual
vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência
que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente,
deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser
transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece
sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas
que devemos enfrentar.

Tradução para Sin Permiso (inglês-espanhol): Gabriel Vargas Lozano
Tradução para Carta Maior (espanhol-português): Marco Aurélio Weissheimer

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15253