FNDC - Joana Rozowykwiat
Criador do principal programa do Ministério da Cultura - o Pontos de
Cultura -, Célio Turino está se despedindo, em grande estilo, de seu cargo
de secretário nacional da Cidadania Cultural. Ele deixa a pasta no dia 1,
para candidatar-se a deputado federal em São Paulo. Até lá, participa da
Teia 2010, em Fortaleza, evento no qual pode ver de perto o resultado de seu
trabalho para a cultura e o povo que a produz.
Na Teia, é difícil conseguir alguns minutos a sós com Turino. Assediado, ele
posa para fotos, recebe cumprimentos e presentinhos - mostras do que os
grupos culturais estão produzindo com ajuda do MinC. No evento que reúne
representantes de 2500 pontos de cultura e no qual as diversas expressões
culturais do país se exibem, simultaneamente, é fácil perceber o motivo das
reverências.
Em entrevista ao Vermelho, concedida no refúgio da escadaria do Centro
Cultural Dragão do Mar, ele falou sobre a experiência à frente da secretaria
e das transformações promovidas pelos pontos de cultura. "Mudamos
paradigmas. Todas as políticas públicas têm foco na carência e na
vulnerabilidade. Com o Ponto de Cultura, partimos do oposto, da potência, da
capacidade que o povo tem de transformar sua realidade", contou.
Turino, comunista desde os 16 anos, avalia que a identidade brasileira se
fortalece justamente por meio da diversidade. Em ano eleitoral, ele defende
uma "culturalização da política e uma politização da cultura". E adverte:
"não há como pensar num caminho para a revolução brasileira que não seja com
a cultura". Ele será substituído na secretaria pelo poeta e atual diretor do
Programa Cultura Viva, TT Catalão.
Vernelho: Você está deixando o MinC nos próximos dias. Como foi esta
experiência?
Célio Turino: Foram cinco anos e dez meses de trabalho, um mergulho no
Brasil. Fiz centenas de viagens, algumas de barco, como para chegar na terra
indígena dos axaninca e encontrar um ponto de cultura, com estúdio
multimídia e filme premiado em Nova York - feito por índios, falado na
língua deles.
Subir morro, descer ladeira, ir a assentamentos rurais... Pude experimentar
esse Brasil que se faz pelo povo. E o que percebo hoje é que, até como
estratégia do povo brasileiro, por ter vivido numa terra ao mesmo tempo tão
dadivosa e tão injusta, foi se formando uma rede de solidariedade popular,
de criatividade e capacidade de iniciativa, e que floresce por baixo do
tecido social. E quando jogamos foco nessas iniciativas, elas brotam com
muita força.
Hoje são mais de 8 milhões de pessoas participando dos pontos de cultura,
sendo 750 mil, em atividades regulares. Ou seja, é outro movimento social,
outra forma de militância que vai aparecendo. É uma democracia com cara do
povo, por isso alegre. E é isso que a gente vê aqui na Teia, que é uma
mistura de reflexão, organização e encantamento com as apresentações.
Vermelho: Qual a grande inovação dos Pontos de Cultura?
Turino: Mudamos alguns paradigmas. O primeiro deles foi na política pública
de forma geral, não só para a cultura. Todas as políticas públicas têm por
foco a carência e a vulnerabilidade. Com o Ponto de Cultura, partimos do
oposto, da potência. Não chegamos suprindo uma necessidade do povo, mas
identificando a capacidade que o povo tem de agir e transformar sua
realidade. Algumas pessoas diziam "Célio, você semeou estes pontos pelo
Brasil". Mas eu não semeei, eles estavam lá. Eu reguei.
Com essa mudança, vem outra, na relação entre Estado e sociedade. O Estado
sempre trabalhou com o paradigma da concentração e da imposição. No ponto de
cultura, no lugar do controle, trabalhamos com a confiança. Isso cria um
Estado mais poroso, um povo que exercita mais seu empoderamento e pode
trazer novos padrões de relacionamento entre Estado e sociedade, que
extrapola a questão da cultura em si.
A gente exercitou Marx na prática. Colocamos os meios de produção nas mãos
de quem produz. Isso se traduz com o estúdio multimídia, que permite que a
narrativa seja executada na primeira voz. Mesmo as experiência socialistas
do século XX não chegaram a esse grau de radicalidade democrática. Nos
pontos de cultura é o índio na voz do índio.
Vermelho: E o que permitiu tamanha radicalidade?
Turino: O guarda chuva do Gilberto Gil permitiu que a gente fizesse isso. E
eu diria que a elite dominante não percebeu esse processo, eu até não achei
ruim que a imprensa, especialmente do Centro-Sul nem tenha se dado conta do
que estava acontecendo, porque a gente pôde prosperar com esse grau de
liberdade e radicalidade.
Vermelho: Qual o impacto dessas mudanças na questão da identidade
brasileira?
Turino: Fica cada vez mais claro que a identidade do brasileiro se fortalece
na diversidade, na troca, no intercâmbio - que não nega as identidade de
cada um, mas vai adiante e cria outra coisa. O Mário de Andrade, em
Macunaíma, falava do herói sem nenhum caráter, que muita gente interpretou
errado. Nenhum caráter significava que o Brasil teria o seu caráter em
formação.
E eu diria que o caráter do brasileiro está se definindo melhor e esse
caráter é a convivência na diversidade, que nos faz fortes. O ponto de
cultura, ao promover uma cartografia da cultura brasileira e feita pelo
próprio povo, ele vai revelando isso. E ele transforma, na medida em que
você se encontra e se relaciona com o outro. É uma dialética. Criamos um
desenvolvimento por aproximação.
Vermelho: O trabalho dos pontos não tem espaço na mídia tradicional. Isso
incomoda?
Turino: Hoje não nos afeta, porque em algum momento eles vão se surpreender
e contar uma história sem conseguir entender o que levou o Brasil a essa
mudança.
Vermelho: Estamos em ano eleitoral e está em discussão na Teia a
consolidação dos programas do MinC como política de Estado. Há risco de
descontinuidade?
Turino: Risco sempre há. Mas a gente tomou um conjunto de iniciativas, como
as redes estaduais, que envolveram outra forma de compromisso prático,
independente de partidos políticos. Mas é necessária, sim, a apresentação de
leis e esse é o tema do Fórum de Pontos de Cultura, que vai até quarta (01).
Está se trabalhando em cima de duas leis. A Lei Griô, em fase de coleta de
assinaturas, para os mestres da cultura oral, e a Lei Cultura Viva, da
autonomia e do protagonismo popular. Para que a gente seja coerente com o
conceito construtivista do programa, achamos que os projetos devem vir por
iniciativa popular, mesmo que leve mais tempo.
Vermelho: Qual a importância dessa Teia, em final do governo, e acontecendo
pela primeira vez em uma cidade nordestina?
Turino: É um esforço fazer aqui, pela questão dos custos e tudo mais. Mas
esse é nosso papel. A Teia tem um componente simbólico grande. A primeira
foi na Bienal de São Paulo, por uma decisão simbólica, porque aquele é o
espaço da arte chamada de arte, do cânone da arte. Era preciso que a
produção cultural da periferia entrasse naquele espaço.
Depois fomos para o Palácio das Artes, em Minas, sempre no sentido de que o
povo entra pela porta da frente. Em 2008, foi na Explanada dos Ministérios
e, agora, no Nordeste. Comparo a Teia com um movimento de guerrilha
simbólica: os pontos, enquanto focos de áreas livres de pensamento; e a Teia
é a incursão desses focos. Esse componente da cultura é muito forte. Digo
até que não há como pensar num caminho para a revolução brasileira que não
seja com a cultura.
Vermelho: Quais os avanços na política cultural da gestão Lula e o que ficou
por fazer?
Turino: Cultura não tem fim. Mas houve uma mudança inconteste. O slogan do
MinC, até 2002, era "cultura é um bom negócio". Reduzia cultura a
mercadoria. O orçamento era pequeno, 0,2%. Hoje, só com o Cultura Viva,
investimos quase isso. A cultura ficava no eixo Leblon-Jardins. Era a mesma
coisa do tempo do D. Pedro II.
Hoje é diferente. Há uma política de cultura, uma descentralização, o Estado
se estruturou, trabalhamos mais no caminho do fundo público, há diálogo com
a diversidade brasileira. E sem deixar de lado essa chamada cultura de
mercado.
Vermelho: O que você sugere ao programa de governo do sucessor do presidente
Lula?
Turino: Consolidar e avançar esse processo desencadeado na política cultural
do governo Lula. Agora é momento de dar um passo adiante. Com essa base toda
do pensamento da cultura brasileira, a gente começar a mudar a política, com
a culturalização da política e a politização da cultura.
Vermelho: Você falou em avançar em relação ao que já foi feito, mas em que
caminho? Qual a principal demanda agora?
Turino: Acho que avançar no entendimento de que quem faz cultura é a
sociedade, as pessoas, não o Estado. É preciso aprofundar a radicalização
democrática. E a gente vê que há mesmo uma relação da cultura com a política
e isso vai ter que ser posto. O país está em uma encruzilhada e tem que se
perguntar qual caminho quer assumir: transformamos tudo em mercadoria, em
coisa, ou criamos uma plataforma a partir do bem comum.
Essa ideia do comum vai ser recolocada no século XXI, tanto que eu assumo
com muito mais convicção a minha condição de comunista, a partir desse
sentido. Eu me coloco à serviço da difusão dessas ideias e desse processo.
http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=512937
Fonte: [culturabrasil]
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