Nas graças de Mussolini - O fascismo no Brasil

terça-feira, 8 de setembro de 2009


Nas graças de Mussolini

PESQUISADORES ITALIANOS DEFENDEM QUE, NOS ANOS 30, O FASCISMO TEVE PENETRAÇÃO MAIS FÁCIL E ENCONTROU CONSENSO MAIOR ENTRE IMIGRANTES NO BRASIL DO QUE NA ARGENTINA; O DITADOR COMPARAVA OS DOIS GRUPOS E LAMENTAVA A RESISTÊNCIA NO PAÍS VIZINHO: "NÃO NOS COMPREENDEM NEM NOS AMAM"


Toda a América Latina (particularmente algumas nações, o Brasil em primeiro lugar) recebia uma grande atenção

Popperfoto/Getty Images




O ditador Benito Mussolini (1883-1945) faz a saudação fascista

ADRIANA MARCOLINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA EM BUENOS AIRES
 

Um livro, ainda inédito no Brasil, sobre a penetração do fascismo nas sociedades latino-americanas indica que a influência dessa ideologia no período entreguerras foi maior no Brasil do que na Argentina, onde a população italiana era proporcionalmente maior.
Para o pesquisador Angelo Trento, autor do capítulo sobre o Brasil no livro "Fascistas en América del Sur", a atitude favorável dos párocos imigrantes, os convites do corpo diplomático e o grande poder de persuasão dos notáveis da comunidade, como os empresários Francesco Matarazzo (1854-1937) e Rodolfo Crespi (1874-1939), contribuíram para construir o apoio maior dos italianos no Brasil ao fascismo, especialmente a partir dos anos 30.
Para a organizadora da coletânea, Eugenia Scarzanella, professora da Universidade de Bolonha, as autoridades italianas em Buenos Aires não souberam aproveitar o potencial que representava a maciça presença de italianos no país (em 1927, quando a Argentina tinha 13 milhões de habitantes, 1,7 milhão eram italianos).
Trento, professor da Universidade de Nápoles, estudioso da imigração italiana no Brasil, revela que Matarazzo e Crespi, os "tios da América", não apoiaram o fascismo apenas com palavras, mas também com generosas contribuições financeiras para organizações do regime na Itália e no Brasil.

 

FOLHA - O fascismo foi um instrumento para a identidade e a integração dos imigrantes italianos na sociedade brasileira?

ANGELO TRENTO - O fascismo foi, certamente, um instrumento de construção (e, para as camadas médias, de fortalecimento) de uma identidade nacional que também envolvia as classes populares, que por muito tempo, depois da unidade da Itália [no século 19], haviam permanecido ligadas a uma dimensão regional, quando não local, expressa por meio de usos, costumes e vários dialetos, segundo a região de nascimento. Com sua agressividade verbal, porém, o governo de Mussolini também estimulou uma atitude de distanciamento em relação à sociedade de acolhimento. Esse sentimento de estranhamento representou a exceção e não a regra, mas não resta dúvida de que a aquisição de uma consciência nacional acabou por identificar a italianidade com o fascismo. Assim, as manifestações dos seguidores de Mussolini em terras brasileiras (como em tantos outros países) se identificaram com hinos, desfiles e a ostentação de camisas pretas, terminando por criar uma fricção com a população local.

FOLHA - A mudança do termo "emigrantes" para "italianos no exterior", ocorrida em 1927, perdura até hoje na linguagem oficial do país. Seria uma forma de ocultar o passado emigratório da Itália?

TRENTO - A utilização do termo "italianos no exterior" no lugar de "emigrantes" se enquadrava no projeto fascista de exaltação da italianidade. Sem dúvida, a operação também escondia a vontade de colocar em segundo plano as causas econômicas e sociais da emigração, mas este não foi o motivo principal. Aliás, o regime promoveu duas ideias: uma emigração qualificada e o fim da emigração popular de massa, o que se enquadrava sob a óptica da política de potência buscada por Roma. A ideia de que o excedente demográfico era uma justificativa da emigração fazia parte dessa política.

FOLHA - Quantos italianos havia no Brasil no final da década de 20?

TRENTO -
Não houve um Censo no Brasil entre 1920 e 1940. No entanto, estimativas confiáveis, como as elaboradas por Giorgio Mortara, judeu italiano que emigrou para o Brasil após as leis raciais do regime fascista em 1938, e um dos pioneiros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que, em 1930, havia 435 mil italianos no país.

FOLHA - Por que a ideologia fascista conseguiu uma penetração maior entre os imigrantes italianos no Brasil do que na Argentina?

TRENTO -
Porque a emigração italiana para o Brasil foi mais tardia em relação àquela que se dirigiu para a Argentina. Como os italianos chegaram antes àquele país, a imigração era marcada pelos ideais do "Risorgimento" [processo de unificação da Itália] e de Giuseppe Mazzini [1805-1872, considerado o apóstolo da unidade do país]. Também tinha um caráter republicano e democrático. Portanto, quando as primeiras associações italianas começam a se formar, os imigrantes que já estavam estabelecidos na Argentina assumiram seu controle e conseguiram manter várias delas fora da órbita fascista. Algumas foram, inclusive, direcionadas em sentido contrário, ou seja, passaram a ser antifascistas. Há muitas razões para a maior penetração do fascismo no Brasil, mas podemos mencionar uma fraqueza maior do antifascismo italiano no Brasil, principalmente nos anos 1930, que se deve, em parte, a um fluxo menor de exilados políticos para o Brasil em comparação à Argentina, principalmente de esquerda e, em particular, de comunistas. Os indícios dessa penetração maior da ideologia estão em uma tomada de posição mais firme por parte dos jornais argentinos e das associações italianas em relação ao fascismo (a imprensa antifascista, ou, de qualquer forma, não alinhada com o regime, teve um impacto e uma circulação menores no Brasil do que na Argentina). No Brasil, em meados dos anos 1930, as associações italianas estavam totalmente a favor do fascismo, por convencimento ou por conveniência. Há ainda a observação do próprio Mussolini, que expressou o seu desapontamento ao então embaixador italiano na Argentina, em 1936: "Os italianos da Argentina não nos compreendem nem nos amam. Se as coisas continuarem assim, vamos nos dirigir cada vez mais aos italianos no Brasil".

FOLHA - O governo de Mussolini queria fazer do Brasil uma "nação fascista" ligada a Roma ou nutria pretensões imperialistas?

TRENTO -
A ideia do fascismo era aproveitar o número significativo de italianos que viviam e trabalhavam em alguns países da América Latina para criar grupos de pressão e uma atmosfera favorável à Itália, sob a forma de simpatias políticas e com fins econômicos e comerciais, posição já presente na classe dirigente italiana a partir do final do século 19. Não havia pretensões imperialistas nem de expansão territorial.

FOLHA - Qual era a imagem que o regime de Mussolini tinha da América do Sul?

TRENTO -
Ao pesquisar a propaganda dos anos 1920 e, sobretudo, dos anos 1930, parece evidente que toda a América Latina (particularmente algumas nações, o Brasil em primeiro lugar) recebia uma grande atenção.
Após 1929, a região passou a ser vista com um grande interesse, uma vez que o regime estava convencido de que o enfraquecimento, em escala mundial, dos postulados democráticos e liberais podia abrir horizontes interessantes para o modelo totalitário italiano.

Roma se apresentou como alternativa à liderança de Washington e de Londres, mas sem se colocar no mesmo patamar e até sublinhando a ausência de qualquer vontade expansionista e de dependência. O aparato teórico dessa manobra se baseava no conceito do panlatinismo, de forte valor simbólico e propagandístico, que englobava a ideia de uma grande família étnica, em contraposição ao pan-americanismo.

FOLHA - Em geral, a historiografia brasileira afirma que a ideologia fascista só encontrou seguidores entre a elite da coletividade italiana, enquanto as classes populares abraçaram o anarquismo. Isso é verdade?

TRENTO -
Foi apenas uma minoria que se empenhou no movimento operário, defendendo posições anárquicas, anarcossindicalistas e socialistas. De qualquer forma, isso aconteceu antes dos anos 1920 (caracterizados no Brasil por uma grande repressão). O fascismo encontrou sem dúvida um vasto consenso entre a coletividade italiana e não apenas entre as classes altas e as camadas médias, mas também entre a pequena burguesia (como na Itália), principalmente comercial, e entre os próprios operários, principalmente nos anos 1930. Vários fatores contribuíram para esse êxito: primeiro, a ausência ou a fraqueza de um componente do "Risorgimento" na emigração que se dirigiu para o Brasil, a qual, ao contrário do que aconteceu na Argentina e no Uruguai, não havia antes dominado o mundo das associações regionais, orientando-o politicamente de forma desfavorável ao regime. Em segundo lugar, influiu uma obra de propaganda mais minuciosa, que se valeu não apenas de bolsas de estudo concedidas aos jovens brasileiros, convites de viagem para jornalistas, projeções de filmes e subsídios a jornais locais que falavam bem do regime, mas também de iniciativas culturais (professores visitantes nas universidades brasileiras) e empreendimentos que atingiam o imaginário coletivo, como as travessias aéreas do Atlântico que tinham como meta o Brasil, realizadas por pilotos italianos entre 1927 e 1931. Em terceiro lugar, o prestígio elevado de que gozava Mussolini com a opinião pública, as classes dirigentes e os governos estrangeiros influenciava principalmente os emigrantes. Enfim, no Brasil, havia, mais que nos outros países de forte imigração italiana na América Latina, um corpo diplomático altamente fascistizante depois de 1925.

FOLHA - Por que o corpo diplomático tinha um caráter mais fascista particularmente no Brasil?

TRENTO -
Durante o fascismo, o corpo diplomático italiano em todo o mundo foi conivente com o regime em vigor ou, pelo menos, não lhe foi hostil, salvo raras exceções. A partir da metade dos anos 1920, foram incorporados principalmente cônsules, mas também embaixadores, que não eram de carreira, que entraram por fidelidade política. No Brasil se registrou, eu diria que por acaso, uma concentração desses diplomatas.

FOLHA - O sr. escreve que, no Brasil, havia muitos imigrantes "convertidos" ao fascismo. Como as autoridades italianas os convertiam?

TRENTO -
As "conversões" aconteciam com várias categorias, mas principalmente com alguns jornais étnicos, que antes eram adversários do "duce" [Mussolini], muitas associações, alguns intelectuais e pessoas que tinham uma atividade de esquerda. Assim como na Itália, alguns militantes do movimento operário adotaram o fascismo em virtude do seu antiparlamentarismo e anti-individualismo iniciais, e da ilusão de um futuro pansindicalismo. É mais fácil explicar a adesão das pessoas da classe alta, mesmo as que no começo eram pouco favoráveis, das camadas médias e da pequena burguesia, à ideia de nação, à exaltação do conceito de ordem e à busca de uma política de potência.

FOLHA - Por que a estrutura dos "fasci" e do Partido Nacional Fascista cresceu tanto no Brasil?

TRENTO -
Os "fasci" [núcleos que representavam o Partido Nacional Fascista da Itália] no Brasil cresceram principalmente em número de sedes: em 1924 já eram 40, ou seja, um décimo de todos os "fasci" italianos no exterior, e dez anos depois quase chegavam a 90. No entanto, o número de inscritos [os membros em regra com o pagamento das mensalidades eram entre 5.000 e 6.000, no máximo] permaneceu irrisório com relação à quantidade de italianos residentes [558 mil no Censo de 1920 e 325 mil no de 1940]. A proliferação dos "fasci" estava relacionada com a sua dispersão territorial em uma área muito grande como é o território brasileiro. Já a Opera Nazionale Dopolavoro teve um bom sucesso, não tanto em termos de sede [19 em todo o Brasil no final dos anos 1930], mas de inscritos [7.000 apenas na cidade de São Paulo, em 1935]. Este último dado é importante, uma vez que esta estrutura ocupava um raio de ação muito amplo na organização das horas vagas das classes populares (cinema, teatro, excursões, festas dançantes e atividades esportivas). No que se refere ao aspecto financeiro, os imigrantes ricos não foram particularmente generosos com os "fasci", a fim de evitar acusações de que fomentavam paixões e conflitos políticos alheios à terra que lhes havia acolhido. Eles preferiam enviar doações significativas diretamente ao fascismo na Itália, seguindo o exemplo dos membros mais conhecidos na comunidade, como Francesco Matarazzo e Rodolfo Crespi.

FOLHA - Mussolini simpatizava com Vargas; mas tinha consciência de seu lado nacionalista?

TRENTO -
Sim, essa preocupação existia por parte das autoridades fascistas e as correspondências diplomáticas são uma prova disso. Mas o nacionalismo getulista nunca entrou em rota de colisão com as atividades fascistas no Brasil. Até na iminência da entrada do Brasil na guerra e depois disso, excetuando situações particulares como o Rio Grande do Sul, as normas adotadas para os cidadãos do Eixo foram aplicadas com menos energia para os italianos, em comparação aos alemães e japoneses.

FOLHA - O governo de Mussolini contribuiu financeiramente com a Ação Integralista Brasileira (AIB). O que havia por trás disso?

TRENTO -
A AIB foi financiada por Mussolini inclusive após ser dissolvida por Vargas, mas deve-se dizer que o fascismo nunca confiou muito no partido ou nos seus dirigentes.

FOLHA - Qual foi a marca deixada pelos fascistas italianos na sociedade e na vida pública brasileiras?

TRENTO -
As marcas mais fortes foram deixadas nos anos 1930, com a evocação ao corporativismo; a inclusão, ao pé da letra, da "Carta do Trabalho" fascista na Constituição brasileira da era Vargas; mas também no controle da imprensa, nas técnicas de criação do consenso, nos mecanismos de propaganda. Outros elementos, como por exemplo o partido como instrumento importante de canalização do consenso, não foram imitados.

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COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
EM BUENOS AIRES


A Itália vive uma renovação no estudo sobre o fascismo: segundo Eugenia Scarzanella, responsável pela compilação dos artigos de "Fascistas en América del Sur", até poucos anos atrás os historiadores italianos privilegiavam o estudo do antifascismo, provavelmente motivados a trabalhar com temas considerados "politicamente corretos".

Assim, negligenciaram aspectos relevantes do movimento fascista, como a disseminação da ideologia entre emigrados, afirma Scarzanella. A obra (edição argentina Fondo de Cultura Económica, 352 págs., 52 pesos, R$ 25) resulta de um projeto de pesquisa financiado pelo Ministério da Universidade e da Pesquisa Científica da Itália.

"Os ataques ao historiador Renzo De Felice (1929-96), cujos estudos revelaram o consenso dos italianos em relação ao regime fascista, contribuíram para essa situação", afirma. "O fascismo oferecia um instrumento de identidade e integração dos imigrantes na sociedade de acolhida."

Segundo a historiadora, "o regime fascista levou adiante uma política eficaz entre os italianos no exterior; para eles a Itália de Mussolini era um país que podia se apresentar como moderno e protagonista da política mundial."

O livro reúne textos que tratam do Brasil, da Argentina e do Peru e usa como fontes os documentos diplomáticos italianos, os arquivos dos países sul-americanos e as coleções das imprensas étnicas locais.

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"Se um homem não sabe o que uma coisa é, já é um avanço do conhecimento saber o que não é." (Jung)

Fabrício Augusto Souza Gomes
fabricio.gomes@gmail.com  
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