Digitalizado, acervo de Jango mostra amargor durante o exilio

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008


*Em 62, EUA pediram apoio a Jango na crise dos mísseis em Cuba*

*Carta de John Kennedy mostra que americano solicitou ajuda política e
militar ao Brasil contra a ameaça soviética

Em manuscrito de arquivo do CPDOC, João Goulart se manifesta contra ação
militar em Cuba e defende autodeterminação do país*

*RAPHAEL GOMIDE*
DA SUCURSAL DO RIO

No auge da crise dos mísseis em Cuba, em 22 de outubro de 1962, o presidente
dos Estados Unidos, John F. Kennedy, enviou carta "secreta" ao colega
brasileiro João Goulart, pressionando-o por apoio diplomático, político e
até militar contra o "desafio ousado e belicoso" [de instalar mísseis em
Cuba] da URSS a "todos os povos livres". Segundo Kennedy, os mísseis
representavam "grave (...) ameaça ao hemisfério ocidental", e os dias
seguintes determinariam "o futuro da humanidade neste planeta".

Kennedy propõe a Jango uma ação conjunta, que pode incluir a "participação
(...) em alguma ação militar", "senão a União Soviética vai passar a
violações mais e mais flagrantes contra a paz internacional e a liberdade,
até que não tenhamos mais escolha a não ser a rendição absoluta ou o
desencadear de um holocausto nuclear". "Temos de tomar uma posição agora; o
mundo inteiro está observando."

As quatro páginas da mensagem e mais 563 páginas de documentos, além de 136
fotos, integram os arquivos pessoais do presidente deposto João Goulart
(1961-64), desde domingo digitalizados e disponíveis a acesso público no
site do CPDOC/FGV *(www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/)*.

O governo brasileiro não participou da malfadada intervenção em Cuba. Não se
sabe se esta foi a resposta oficial do brasileiro, mas os arquivos do CPDOC
contêm manuscrito em que Jango se manifesta contra a intervenção militar em
Cuba e defende a autodeterminação do país. "Nunca reconhecemos a guerra como
instrumento de resolver conflitos entre os países", escreveu.

Os papéis digitalizados são um resumo do pensamento e das angústias do
último presidente civil antes de 21 anos de regime militar. Trazem
documentos pessoais, fotos e material de sua vida pública. Retratam o
conturbado período de sua presidência, iniciada com a renúncia de Jânio
Quadros e encerrada com sua queda, após golpe que o levou ao exílio, onde
morreu, em 1976.
Há relatos sobre articulações políticas do então governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, para derrubá-lo, em 1963, e dos militares contra sua posse
após a renúncia de Jânio, em 61. Uma carta do amigo Doutel de Andrade o
alerta que ele seria preso caso voltasse da China ao país naquele momento. A
fonte era o presidente da República provisório, Ranieri Mazzili.
Os papéis são divididos por período histórico e compreendem as várias fases
da vida do gaúcho, herdeiro político de Getúlio Vargas.

Observando virtualmente os documentos, é possível compreender a
radicalização e a tensão antes do golpe, as tratativas infrutíferas de
reverter o destino já no Uruguai, e enxergar a tristeza e o amargor dos anos
de exílio. Até sua morte, ele escrevia manuscritos endereçados "ao povo
brasileiro".

*Aberto para o mundo*

A digitalização dos documentos foi feita com o patrocínio de R$ 3 milhões do
banco Real. Segundo Suely Braga, coordenadora do setor de documentação do
CPDOC, o objetivo é preservar o acervo e abrir possibilidades de consulta
para o mundo.

O acervo de Jango foi doado em 1990 pela família de Raul Ryff, que foi
secretário de imprensa do presidente. Não existe outro arquivo privado
conhecido, diz Suely Braga, embora parentes do ex-presidente tenham se
referido a um baú, que se teria perdido.

Para a pesquisadora sênior do CPDOC Ângela de Castro Gomes, autora do livro
"Jango -As Múltiplas Faces", o acervo "contempla tanto a dimensão de homem
público quanto a pessoal" de João Goulart. "Lendo o arquivo, conseguimos
sentir como aquele personagem vivia como pessoa, seu sofrimento e seu desejo
de voltar ao Brasil de qualquer maneira", diz.

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Fabrício Augusto Souza Gomes
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